No final dos anos 90, o crítico brasileiro Frederico Morais chamou uma vez o mercado de arte de opus diabolicus, não afirmando a alcunha, e sim o contrário, colocando o mercado como dragão que, diante da falsa pureza e integridade dos artistas, vira moinho de vento. Esta ideia de pureza, por sua vez, remete ao também crítico estadunidense Clement Greenberg que defendia uma arte autônoma, arte pela arte que falasse principalmente dela mesma. Mas isso já tem uns 80 anos.
Fred Moten e Stefano Harney, neste texto inédito, em todas as línguas, traduzido por Victor Galdino, retomam essas questões a partir da homofonia que existe na palavra para baixio ("schoal", uma formação geológica que não é nem terra nem mar) e dos economistas da escola de Chicago (Fischer Black e Myron Scholes), para criar um fio condutor entre o funcionamento do mercado financeiro, trabalhos de arte e estudos decoloniais e afroamericanos. Nesse fio, é colocado em questão o recente interesse do mercado de arte por tudo aquilo que contrasta com o hegemonia branca europeia, mas no contexto em que a arte inteira, sem exceções, transforma-se em ativo financeiro.
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Sobre o estatuto de uma nova classe de ativos*
Fred Moten & Stefano Harney
Tradução de Victor Galdino
No fim da década de 1960 e no início da de 70, lá na Universidade de Chicago, no interior do quadro de contribuições fundacionais e peculiares que aquela instituição ofertou ao desenvolvimento e aprimoramento do neoliberalismo, os matemáticos Fischer Black e Myron Scholes produziram um modelo para entender as dinâmicas de um mercado financeiro que não apenas passou a abrigar instrumentos derivativos, como, na verdade, cada vez mais era dominado por eles.[1] A descoberta de uma forma de medir o risco de uma transação no intervalo em que a própria transação ocorre deu aos investidores a possibilidade de proteger apostas relativas às apostas feitas por outros investidores, transformando essa estrutura em-cascata feita de apostas seguras e riscos externalizados ela mesma em uma mercadoria.
No fim da década de 90, surgiu um projeto artístico chamado Black Shoals Stock Market Planetarium. Nele, Joshua Portway e Lise Autogena projetam dados do mercado de ações em tempo real na superfície de um domo escurecido. Cada estrela no planetário representa uma corporação. É um projeto dinâmico, ele mesmo aderindo à qualidade cibernética do mercado na criação de congregados de investimentos. Esses congregados são chamados de “criaturas”[2]. O projeto veio do esforço de entender o famigerado colapso do Long-Term Capital Management, fundo de cobertura sediado em Greenwich, no estado de Connecticut, que teve Myron Scholes parte de seu conselho administrativo. Há quem descreva esse colapso – presságio da crise financeira global de 2007 – como resultado do uso abusivo de modelo Black-Scholes; e há quem pense que o colapso foi incontornavelmente animado pelos desejos e pressupostos que sustentavam o trabalho de Black e Scholes, uma avaliação que nos parece mais precisa. De todo modo, o modelo fracassou, e esse fracasso levou a um novo regime securitário, um novo tempo do capitalismo financeiro.
'Black Shoals: Dark Matter' - planetário de mercado de ações por Lise Autogena e Joshua Portway, exposição Big Bang Data, Somerset House, Londres. Foto de Joshua Portway, 2016.
Vinte anos após Portway e Autogena terem iniciado seu projeto, a acadêmica Tiffany Lethabo King publicou o livro The black shoals: offshore formations of black and native Studies [Baixios negros: formações dos estudos negros e indígenas em alto mar]. O estudo de King não faz qualquer referência direta à fórmula já desacreditada de Black-Scholes ou ao projeto artístico Black Shoals, porém conjura, efetivamente, outro sentido para a palavra “shoals”[3] que nos demanda/permite ver como o encontro fatal entre financeirização e comodificação atinge sua modernização/globalização na mecânica estrutural e na experiência comum do colonialismo e do tráfico de pessoas escravizadas — algo estudado na historiografia do capitalismo racial e na teorização negra desde o tempo de Ouladah Equiano e Harriet Jacobs, passando pela época de W. E. B. Du Bois e Ida B. Wells, de Goerge Beckford e Sylvia Wynter. E, se Portway e Autogena usavam “shoals” no sentido de “cardumes de peixes”, um bando de criaturas, Lethobo King, por sua vez, prefere pensar nas plataformas submarinas onde a água encontra a linha costeira, interface que ela considera não ser nem mar, nem terra. Poderíamos mesmo dizer: assim como um ativo, que oscila entre liquidez e iliquidez.[4]
Em sua contraespeculação, Lethobo King junta os estudos negros e o pensamento indígena, fabricando, assim, uma valiosa assombrologia das finanças na qual nos encontramos investidos e investidas. Ela se encontra, portanto, na tradição dos estudos negros, expondo-se, como tantas outras pessoas, ao expor o risco, a securitização, a alavancagem, o investimento, o seguro, e a própria gestão como elementos forjados no caldeirão do desenvolvimento capitalista, desenvolvimento que, por sua vez, foi marcado pelo destino dos povos negros e indígenas.
Da lavagem ao redemoinho
O trabalho de King, no entanto, não assombra apenas as finanças e suas operações, mas, por meio de Portway e Autogena, assombra também o mundo da arte. Se este revestiu, efetivamente, a si mesmo com o poder das finanças, então ele deve igualmente encarar esses fantasmas. Pois agora os baixios da arte contemporânea se mostram elusivos, enlameados. Com a ascensão da securitização, a fantasia ocidental de uma autonomia da obra de arte – que, por tempo demais e como que a distância, tem oferecido um registro estético da ascensão/disseminação do capitalismo – já não pode ser assegurada.[5] Pouco importa se essa suposta autonomia é vista por meio de um prisma adorniano, brechtiano ou greenbergniano: sobrou para as audiências e para o pessoal da crítica elaborar e avaliar as linhas que conectam esse comentário recorrente ao mundo profano do comércio. Seja ela apresentada por meio das vanguardas ou das múltiplas modernidades, a relação íntima entre arte e capitalismo nunca foi objeto de dúvida. Agora, no entanto, encaramos uma espécie de colapso das categorias, conforme artes e finanças se lançam aos braços umas das outras, meio que um redemoinho ali em alto mar. Essa imagem, porém, de um romance em apuros exige um esclarecimento. Em vista/no meio desse redemoinho, continuar falando da relação entre arte e capitalismo é soar como o amante rejeitado que carrega ainda, dentro de si, o fogo da paixão por alguém que se foi há um bom tempo. Uma negação reflaxionária é dada no modo como o amante é devorado pela indiferença dessa “chama dura como uma joia”.[6] A arte não é determinada pelo capital financeiro. Ela não paga pelo serviço que o capital financeiro oferece. Ela é o capital financeiro.
Essa transição ao capital financeiro, em que se pode dizer que a arte, enfim, fez-se bem sucedida, pouco tem a ver com o preço orbitante de um Rauschenberg ou de um Miró, ou com a vasta expansão do mercado artístico com a entrada de novos investidores globais. Nem mesmo com as estratégias de indústrias culturais que operam como esquemas de desenvolvimento nacional ou regional. É uma questão de logística financeira, da sobrevida dessa intensificação mecânica que Black e Scholes produziram no jogo entre cálculo e comodificação. A securitização alcançou uma interoperatividade, uma convertibilidade plena. A obra de arte na forma de um ativo pode ser integrada a um produto de investimento ou ao portfólio de um investidor de maneira tão tranquila quanto ações de uma empresa ou títulos públicos; sob essas condições específicas da logística financeira, a especulação febril em torno da arte enquanto ativo financeiro perde seu caráter específico e se torna apenas especulação financeira, ponto.
Dá para entender o fato de poucas pessoas aceitarem o reconhecimento do colapso da distinção entre arte e finanças. Pense, por exemplo, no modo como a arte é usada para lavar a imagem de uma empresa.[7] Sob o regime de securitização, falar nesses termos, ao menos no que diz respeito ao seu uso comum, nem faz muito sentido. Talvez fosse melhor falar apenas “lavagem de dinheiro” – dinheiro lavando dinheiro ou, mais precisamente: capital lavando capital. De todo modo, esses investimentos são incorporados todos juntos em um portfólio, não é apenas uma justaposição. Estão ali numa tranche.[8] Tudo isso faz parte de um deslocamento mais amplo e, tirando algumas exceções – como no caso de Marina Vishmidt –, até mesmo as melhores críticas de arte seguem evitando abordar o assunto.
Para o nosso propósito aqui – e com isso queremos dizer: o propósito para o qual somos um meio, ou seja, a tradição radical negra –, no entanto, não temos como fugir do reconhecimento desse novo-velho estado de coisas. Pois é precisamente nesse ponto que emerge uma nova classe de ativos no centro da especulação financeira: a arte negra e indígena. É difícil achar um museu ou uma bienal que não tenha expandido seu portfólio de investimentos por meio da incorporação dessa nova classe, ou que não tenha apostado boa parte de suas fichas nela. Para as pessoas negras e indígenas, o que rola é um momento de inclusão seletiva que, em quaisquer outras circunstâncias, teria sido ocasião para refletir melhor e proceder com cautela; sob essas condições financeiras, porém, é algo que tem de provocar a mais profunda vigilância para os povos que, por séculos, sobreviveram aos experimentos diabólicos com especulação, produção e reprodução para fins lucrativos, para alimentar o capitalismo logístico.
A tranche de investimentos
Onde, então, na tranche tradicional de investimentos, encontramos essa nova classe de ativos? Quais são os ativos de baixo e alto risco? Será que é a obra de arte negra ou indígena que assume os riscos, e o MoMa é que oferece os títulos de crédito? Ou são essas obras as responsáveis por assumir a dívida das coleções brancas e envelhecidas que perderam seu crédito por inadimplência? Para pensar nessas questões, precisamos nos perguntar uma série de outras coisas. Como a marginalidade da comunidade artística negra/indígena, historicamente efetuada pelo complexo artístico-financeiro, passou a ser alavancada como uma obrigação que dá segurança ao museu? Como a incorporação dessa marginalidade ao museu fez com que ela fosse mais lucrativa, e isso no sentido de que ela especula criticamente sobre uma história ainda em curso de exclusão negra, história da qual o museu é um agente, agente que é parte da composição institucional do capitalismo racial? Qual é a relação existente entre as obras negras/indígenas de arte, tomadas como instrumentos financeiros, e a lavagem (moral) do dinheiro derivado do risco econômico e da regulação (para)militar que são impostos à vida social – vida que, por sua vez, abastece essa arte recém-institucionalizada ao mesmo tempo em que por ela é representada?
Chegou o momento delas
Se a exposição da flexibilidade e da alienabilidade dos direitos de propriedade impostas às comunidades racializadas é a parte mais importante do trabalho de artistas nessas comunidades, o que permanece (des)generificado com e nessa parte é uma crítica mais cuidadosa, mais completa da propriedade, crítica exigida e convocada a partir dos baixios. Esse chamado, no entanto, fica com frequência submerso em seu próprio meio, uma atmosfera discursiva que normaliza a reivindicação fatalmente justificável por direitos de propriedade, assim como por outros direitos anexos à individuação pessoal/cultural. Afinal, por terem sido excluídas, roubadas, usadas como presença ausente, abusadas de mil outras maneiras, as pessoas negras e indígenas no mundo da arte dificilmente deixarão de experimentar esse momento de “chegou a minha vez”, “finalmente terei o reconhecimento merecido” – se não o merecido, ao menos o mesmo reconhecimento do qual artistas brancos têm desfrutado esse tempo todo. E é difícil, sobretudo irresponsável deixar de pensar que é possível usar esses novos recursos, roubá-los para si e para outras pessoas. Esse momento, apesar disso, e por poder ser considerado uma unidade da desordem (espaço)temporal da tradição radical negra, carrega sua própria contenção dessa desordem: ele é inconsistente com o caminho da indigeneidade ao interminavelmente ser uma parada, parada para criar um assentamento, para assumir o controle antes do êxodo.[9] Esse momento, na verdade, é o brilho, relance ou tranche do olhar negro/indígena, em que o liberalismo no interior do qual a libertação se encontra imersa é dado como traição pictórica.
Ao mesmo tempo, mas não no mesmo momento, esse chamado que vem dos baixios deve ser respondido sob condições que, mais uma vez, envolvem uma comodificação pesada, que nunca foi a mesma coisa que a comodificação do trabalhador, cuja branquitude já está sempre dada na individuação figural que o artigo definido implica. A precisão dessa nova comodificação financeira, dada na incoerência peculiar e fascinante da artista negra, do artista negro, ainda carece de elaboração. Ficamos, então, com a questão acerca do modo como as intenções e potencialidades radicais da prática estética negra/indígena são redirecionadas em (direção a) uma economia sócio-imaginativa contraespeculativa.
Nosso tempo é agora
Obviamente, essa pergunta pode e deve ser feita não apenas em relação aos avatares dessa nova classe de ativos – sejam eles dados como a figura do artista ou a figura da obra de arte –, mas aos gestores e às agências de classificação de risco responsáveis por sua avaliação. Ou seja, em relação a nós que ocupamos as figuras não menos problemáticas do crítico ou do acadêmico ou do temível teórico cultural, conforme o jogo entre consumo e aprimoramento é incorporado mais firmemente do que nunca na logística das finanças. A fórmula é clara. Cada exibição, cada bienal, cada museu deve incluir um guia para investimentos. Nesse catálogo, além da caracterização visual dos próprios ativos, encontramos a avaliação feita por quem os gerencia: curadores, críticos de arte e artistas (por meio do resumo que oferecem de sua obra) – as três divisões de uma empresa de investimentos sediada no mundo da arte. Depois, vem a agência de classificação de risco, os avaliadores independentes: quem trabalha com Estudos Negros ou Indígenas na universidade. A contribuição dessas pessoas ao guia de investimentos é solicitada por causa de sua independência, já que, supostamente, estão fora do mundo do mercado da arte e de seus fins lucrativos.
As perguntas que surgem aqui são óbvias, inevitáveis em um cenário em que os gestores de ativos celebram artistas até então excluídos/excluídas, ou afirmam a singularidade de certos itens colecionáveis. Será que eles estão tentando inflar o preço das coisas, produzindo especulação volátil, aumentando o percentual que ganharão com o negócio? Inflamada, apaixonada em uma relação artística sempre em vias de desaparecimento, a cidadania no mundo da arte afunda na indiferença, no desinteresse inteiramente interessado da legalidade litorânea. Quando dizemos que artistas assumem riscos consideráveis, ou que a instituição correu um risco ao trazer tal e tal artista, será que não estamos fazendo o papel do investidor ousado? Quando assumimos a função da agência de classificação e afirmamos o estatuto de clássico de um artista, será que não estamos fazendo o papel do investidor de perfil conservador? E o que significa essa nossa garantia em uma era governada pelas finanças? Talvez tudo isso soe um tanto cínico, ou deliberadamente ignorante acerca das estéticas e políticas radicais nessas obras que finalmente chegaram aos salões principais das galerias de arte.
Quem somos nós, afinal, para agir como se não estivéssemos mais apaixonados? Isto aqui não é, no entanto, uma convocação para que geral pare de trabalhar nesses lugares, como também não faríamos uma convocação para que geral pare de trabalhar na universidade – que tem um histórico, aliás, ainda mais extenso de incorporação de práticas radicais, de uma especulação ainda mais rentável em cima delas. Aceite o convite. Escreva o ensaio. Trabalhe para (trabalhar contra) o governo. As amizades são tudo o que temos. Saiba somente que, ao mesmo tempo, na hora certa e antes tarde do que nunca, trabalhar pela abolição do museu – e ser cúmplice desse trabalho pela/da abolição do artista e da obra de arte que anima a prática estética e social negra/indígena – é trabalhar diretamente pelo fim da especulação financeira, ou também: pelo fim do capitalismo. Sobre o reconhecimento, a intensificação e o aprofundamento dessa contradição, não pode haver dúvida nem vacilação. Ao quebrar o contrato financeiro, o que terá significado quebrar o espelho da natureza, teremos começado a prestar uma atenção exódica – de dois gumes – ao modo de nosso olhar, às companhias desse olhar.[10]
TUDO INCOMPLETO — Fred Moten & Stefano Harney
Elaborando ainda mais as ideias presentes no livro anterior, The Undercommons [Os Sobcomuns], Fred Moten e Stefano Harney, em Tudo Incompleto, ampliam para a investigação crítica sobre logística, a individuação e a soberania. Este livro reflete as oportunidades que os autores tiveram de viajar, escutar e aprofundar a reivindicação de e para seu compromisso com a parcialidade.
R$ 65,00
Notas
[*] [N. E.] O título deste texto, do arquivo enviado pelos autores, é Black Shoals/Black-Scholes: on the status of a new asset class. Em diálogo com o tradutor do texto, Victor Galdino, decidiu-se inibir o título na versão de sua primeira publicação, esta mesma em português, para reconhecer o subtítulo em inglês como título original do texto no Brasil.
[1] [N. T.] Derivativos são um tipo de contrato em que se negocia um ativo (mercadorias, ações, taxas de juros, moedas e mais uma porção de outras coisas — até mesmo outros derivativos) a partir de um compromisso, acordado entre as partes, de compra/venda em uma data futura por um valor fixo e preestabelecido. Inicialmente, era uma ferramenta para proteger investidores das flutuações e delírios do mercado, dada a possibilidade de gastar/receber o mesmo valor independentemente das eventuais quedas nas cotações do mercado, mas acabou por se tornar um instrumento de especulação. Ao invés de apenas proteger suas finanças, investidores tentam ganhar com a própria instabilidade, apostando em variações de valor, às vezes ao longo de um ou mais dias, pouco importanto o ativo negociado. O derivativo, visto pela ótica do trabalho de Randy Martin (The Financialization of Everyday Life, referência importanta para os autores), é um meio de produzir novas identidades tomando como ponto de partida pequenas diferenças — o lucro, com esse tipo de contrato, vem dos pequenos diferenciais de preço de venda e aquisição.
[2] [N. E.] A pedido de Lise Autogena, artista do Black Shoals — stock market planetarium, a que os autores se referem, a edição coproduziu o seguinte trecho sobre a obra em questão:
“As criaturas neste trabalho de arte são formas de vida artificiais parasitas que vivem das luzes das estrelas, o que representa a negociação em tempo real de ações, numa perspectiva crítica do capitalismo financeiro. As estrelas criam aglomerados, mas as criaturas evoluem e desenvolvem novos métodos de sobrevivência.”
[3] [N. T.] “Shoals” é comumente traduzida por “bancos de areia”, mas a expressão em inglês serve para falar, de maneira mais ampla, de aglomerados dinâmicos de sedimentos (grãos de areia, fragmentos de rochas, corais etc.) que vão se acumulando devido ao movimento da água marinha. Em sentido figurado, diz “obstáculo” – como “baixio”, que pode ser sinônimo de “banco de areia” – dado o histórico de naufrágios causados pelo contato entre embarcações e esses congregados submersos na parte mais rasa quando o mar já se torna outra coisa. Por isso mesmo, “shoal” como verbo diz o movimento de desacelerar para navegar sem maiores riscos quando a profundidade é reduzida. Lethabo King usa a palavra para falar sobre como o pensamento negro pode incorporar esses vários elementos: obstáculo ao movimento de formas dominantes e normativas de pensar, o caráter dinâmico e a reunião de sedimentos teóricos díspares provenientes de diferentes tradições, dentre outras coisas; no caso da reunião dos pensamentos negro e indígena, a liminaridade desse espaço que é mar e terra ao mesmo tempo serve de analogia para repensar a associação mais imediata entre a ausência de raízes e pensamento afrodiaspórico (sobretudo na América do Norte e no Caribe), de um lado, e entre pensamento indígena e territorialidade de outro.
[4] [N. T.] Iliquidez é o estado financeiro de um ativo que dificilmente pode ser trocado por dinheiro sem perdas consideráveis de valor, oposto da liquidez. Essa dificuldade normalmente tem a ver com falta de interesse, falta de possíveis investidores. Isso faz com que as propostas de compra do ativo ofereçam um valor distante – muito inferior – do que aquele desejado pelo vendedor, negócio de alto risco, risco ainda mais alto se a ideia é vender rapidamente o ativo.
[5] [N. T.] Securitização é o processo que permite transformar os ativos ilíquidos de uma empresa em itens negociáveis no mercado, alvos de um possível investimento. Os pagamentos que uma empresa tem de receber – como no caso de empréstimos feitos a um cliente, pagamentos parcelados no crédito ou notas promissórias –, por exemplo, são ativos que, individualmente, são pouco negociáveis devido ao risco de inadimplência; mas, juntando o que há para ser recebido de uma multidão de clientes, o risco é amenizado e os direitos de recebimento podem ser vendidos em troca de dinheiro – um valor menor do que o que seria recebido no futuro ou ao longo do tempo, mas um ativo ainda mais líquido. A fantasia de um valor intrínseco da obra de arte imune ao mercado é enterrada de vez quando a arte se torna ativo e sua iliquidez é desfeita.
[6] [N. T.] Citação retirada de uma frase na conclusão do livro de ensaios The Renaissance [O Renascimento] de Walter Pater. O contexto é irrelevante.
[7] [N. T.] No original, é usada a expressão “art-washing”, parente de expressões um pouco mais conhecidas por aqui, como “pinkwashing” ou “greenwashing” (políticas empresariais ou governamentais que visam aprimorar a imagem institucional apelando ao discurso e mesmo à estética de movimentos políticos – respectivamente, movimentos LGBT e ambientalistas). Inicialmente, “artwashing” dizia respeito à relação entre gentrificação e abertura de galerias de arte, mas a expressão também fala do investimento em arte como forma maquiagem política adotada por empresas e investidores.
[8] [N. T.] É possível quebrar um portfólio de investimentos em porções (“tranches” no francês), menores – em que os ativos são agrupados de acordo com certas características financeiras (taxa de juros, grau de risco etc.) – a serem negociadas com diferentes investidores. É algo comum nos processos de securitização.
[9] [N. T.] Outra forma de articular essa situação peculiar é oferecida em conversa com os tradutores do texto para o grego; dizem os autores: “a arte enquanto capital passa a se comportar como capital, e o capital deve ser indiferente. É precisa e particularmente na arte negra de hoje que esse caráter ambivalente da obra de arte e da/do artista nos pega, ali onde a indiferença se encontra com o engajamento político, onde arte e artista se comportam e recomportam como se pudessem mesmo viver onde (sabem que) não podem viver”.
[10] [N. T.] Da mesma conversa anteriormente citada: “queremos recusar, aqui, as teorias representacionais da percepção e correspondentistas da verdade e, dessa maneira, distanciar o olhar da afinidade que o distanciamento tem com a captura, conforme são dados no sujeito que percebe, conhece, possui um objeto. Nesse sentido, a obra de arte, por si só, não nos ajuda no sentido de que parece – como mercadoria e capital – pedir por reconhecimento como coisa individuada, mesmo quando recusa esse reconhecimento. Essa coreografia também serve para fazer desaparecer a socialidade estética, a incompletude geral de onde a obra parece emergir como aparência emergente. As obras que tentam resistir à resolução no ser-vista e ouvida – evitando, dessa maneira, a confirmação de seu estatuto de objeto individuado – são confinadas a (e confirmadas e completadas em) sua própria exemplaridade. Nossa visão é prejudicada, nossa respiração fica pesada, nosso presenciar estagnado na presença simultaneamente literal e não-literal da obra, mas aqui estamos nós: no mundo da arte de nosso mundo, tentando ver, ouvir e tocar a fantasia que nos salvará. Se a arte tiver de ser qualquer coisa para nós, terá de ser alguma outra coisa para ela mesma. Será que podemos, a arte e nós, sermos nada além de envolvimento em uma prática sensual crítica?”.
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Stefano Harney & Fred Moten são autores de All Incomplete (2021, Minor Compositions, 2021), traduzido e publicado no Brasil pela GLAC edições como Tudo Incompleto. São também autores de Sobcomuns: planejamento fugitivo e estudo negro (Ubu editora, 2024). Eles são estudantes da tradição radical negra e membros do Coletivo de Escuta Le Mardi Gras. Fred leciona na Universidade de Nova Iorque e Stefano leciona na Academia de Mídia e Artes de Colônia e mora parte do ano no Brasil.
Victor Galdino é pesquisador e professor, tem formação em Filosofia (graduação, mestrado e doutorado) pela UFRJ e formação em Psicanálise no Corpo Freudiano. Trabalha com temas como: imaginário social e imaginação política, identidade e subjetividade, herança colonial e fenomenologia da raça, fugitividade e políticas da recusa, metafilosofia e linguagens filosóficas. Integrante do Laboratório Filosofias do Tempo do Agora (Lafita/UFRJ).
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