Como uma homenagem ao sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos, autor de muitos livros, entre eles um que se destacam por se tornar extremamente atual mesmo tendo sido publicado em 1962, Quem dará o golpe no Brasil dá o mote do momento histórico que vivemos. Falecido em 25 de outubro de 2019, hoje exatamente após um ano, temos o prazer de publicar o texto reflexivo de nossa amiga Paulo Borghi.
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Poucos são os que sabem dizer ao certo tudo o que aconteceu. Desde lá de dentro ou não tão de dentro, mas sentindo toda a força destruidora que vem desmembrado a democracia em cacos, o corpo social aguenta dia após dia. A mente exausta e o espírito quase sem força sustentam o pouco que resta da democracia brasileira. Dilaceradas, as pessoas transitam a velocidade suicida da radical subjetividade à objetividade tirânica [1].
Os que ainda tem força compartilham pensamentos e buscam de todas as formas dizer:
Legenda: M. A. P. A (Modos de Ação Para Propagar Arte), idealizado pela VIVA Projects com curadoria de Patrícia Wagner, é um projeto de arte pública que reúne obras de 27 artistas brasileiros criadas para outdoor que serão veiculadas em 27 cidades nos 27 Estados brasileiros de 31/08 á 25/10 de 2020. A poesia de Traplev foi veiculada no 1º ciclo em Salvador no caminho da praia do Farol pra Ondina, de 31/08 a 14/09.
A vida dos brasileiros queima com a floresta, o inferno somos nós. Wanderley disse, Wanderley avisou: Refletir sobre a democracia contemporânea como se ela fosse inocente das violações que tem sido submetida denuncia de pronto a insuficiência da análise [2]. Muitas pessoas acendem uma vela para ele e agradecem por sua vida. Hoje faz um ano que ele desaterrou, mas seus textos nunca o deixaram partir. Com desespero perguntamos o que devem fazer; olhamos para trás na tentativa de imaginar o futuro enquanto o presente queima numa velocidade feroz bem a nossa frente.
A terra arde no paraíso dos homens de bem, nunca o inferno esteve tão próximo de nós. O tempo de pensar precisa ser mais ágil que o agir. Erupções transcendentes à democracia explodem a cada dia. A verdade única e excludente da mentira faz com que qualquer um que seja diferente a Messias morram por submissão.
Eu, você e todos nós somos pouco a pouco aniquilados. Messias disse que o erro da ditadura no Brasil foi não ter matado 30 mil. Com a ajuda divina de uma gripezinha o profeta varre a calçada enquanto a polícia, a milícia e o exército ajudam com a pá. São quase todos pretos, ou quase brancos, ou quase pretos de tão pobres [3]. Mas acontece tudo dentro da democracia, o golpe parlamentar ocorreu por um sistema de democracia representativa em nome de Deus, da família, da tradição e da moral.
Então Messias diz sim e o Brasil casa com um assassino e torturador [4]. Dispensados os tanques, os militares chegam no parlamento de terno, gravata e bíblia na mão. Glória Deus! Vivemos a novidade do golpe parlamentar inscrito na democracia representativa de massa.
Em julho de 2013 a rua gritava: TEM QUE MUDAR! Então a mudança foi feita. ALTERNÂNCIA DE PODER! Então o poder foi alternado. SEM PARTIDO! Então nada mais coerente de neste exato momento o presidente do Brasil não ter partido. Hoje a rádio toca uma vez mais: meu partido é um coração partido, e as ilusões estão todas perdidas [5].
No início das manifestações de 2013 meu pai me pedia para não ir para as ruas. Pouco tempo depois ele me perguntou se eu não iria no próximo ato. O golpe aconteceu dentro de nossas casas, muito antes de acontecer no parlamento. A tentativa de golpe não resulta da paranoia de alguns grupos de indivíduos, civis ou militares, mas da situação brasileira, no momento presente que conduz a minoria privilegiada do País a esse tipo de comportamento político. Pouco importam os pretextos de superfície (a culpa é do PT [6]) e os acidentes secundários; o golpe é sempre um fenômeno social e, em consequência, são suas causas sociais que devem ser buscadas e combatidas. [7]
Naquele momento meu pai, que leu somente um livro em toda sua vida, a Bíblia, sabia antes de “todes” intelectuais de esquerda do Brasil que era só uma questão de tempo. O que ele não sabia é que seria uma questão de tempo para ele também. Quando o povo se organiza, e sai às ruas ou mesmo quando sai às ruas desorganizadamente, em defesa das riquezas nacionais, a quem pode incomodar um movimento dessa natureza? [8] A manifestação do povo deveria se fazer a favor da maioria da população e contra a pequena minoria (uma elite financeira constituída por banqueiros, empreiteiros, grandes latifundiários, empreendedores e herdeiros) que vive da traição à maioria (da classe trabalhadora que historicamente tem sua força vital usurpada).
Entretanto, as manifestações 2013 [9] e ELE NÃO [10] em 2017 atuaram como uma faca de dois gumes. Em tudo isto o que há de constante é que a ameaça golpista surge sempre que o povo manifesta em atos o descontentamento e a insatisfação que traz na consciência [11].
O movimento das ruas faz-se também nas redes. Na pré-eleição de 2018 meu pai veio me alertar da Ursal e seu plano de transformar o Brasil em um país comunista. Naquele momento eu ri. Melhor dizendo, ri da cara dele. Meu pai assistiu as propagandas dos IPES[12] na televisão e hoje é influenciado pela SECOM [13], além de pertencer ao grupo de whatsapp do “Brasil de Deus”. Louvado seja o senhor!
Assim como muitas pessoas da esquerda, me vanglorio a dizer que a direita é cafona, com a arrogância burguesa que tanto desprezo. Não deveria ter rido de cara de meu pai, não porque ele é meu pai, mas porque rir da cara dele é rir de mim, de você e de todos nós. Meu pai acreditou que o governo do PT representava uma ditadura para o Brasil. Ele assistia a Globo, lia a Veja e acreditava que qualquer coisa que fosse eleita que não fosse o PT seria melhor. O problema é que ele falava - assim como muitos - em coisa.
A despolitização tomou a mentalidade de milhões de brasileiros que mugem: fora todos! A corrupção, ou melhor, a desculpa da corrupção corroeu as sinapses neurológicas das pessoas transformando-as em gado. Vi meu pai se transformando em um gado e se perdendo no meio da manada. Não é sempre e necessariamente um golpe militar, uma ditadura militar, mas pode assumir as mais diversas formas, dependendo das circunstâncias concretas em que for consumado. [14]
A imagem da ditadura que vivemos hoje no Brasil vem montada a cavalo, com a bíblia na mão e acompanhada por toda a sofrência da performatividade evangélica ao som do sertanejo. O estilo é country, em inglês. E é necessário também que as forças populares saibam que o imperialismo dominante em nosso País é o imperialismo norte-americano, que são os desejos e os interesses desse imperialismo que estão por trás dos mais importantes acontecimentos em nossa Pátria, quer econômicos, quer políticos. [15]
A ganância do homem o transformou em gado e a soberba da esquerda percebeu tarde demais que um monstro virava o Rei do Gado. Primeiro mataram os povos originários, depois queimaram as florestas e por fim “plantaram” cabeças de gados. Os gados vivem livres no pasto, sem saber que o abatedouro logo os aguarda. Toda a propaganda, toda a política exterior do imperialismo, enquanto expressão de um dos lados do sistema capitalista mundial, tem por bandeira o argumento de que o capitalismo representa a liberdade e o socialismo a escravidão. [16]
Lembro de meu pai preocupado com a Ursal, com os comunistas que distribuem “kit gay” nas escolas e incentivam a juventude a usar drogas. E para impedir que o povo instale o socialismo, o sistema capitalista vê-se obrigado a acentuar e evidenciar o aparato de repressão que mantém o povo subjugado, tornar-se ditadura expressa e sem disfarce – o que nega, na prática e aos olhos de todo o mundo, a bandeira de liberdade que diz representar. [17]
Com a liberdade do neoliberalismo, a ditadura militar como conhecemos em 1964 descansa seu corpo idoso no banco reserva. Os militares eleitos ou indicados democraticamente para ocuparem o parlamento retribuem os favores dos capitalistas que detém a economia brasileira, as elites obscuras. O golpe militar, como já foi várias vezes referido, se define pelo domínio direto e pessoal do aparelho do Estado pelos dirigentes das Forças Armadas. [18]
Hoje, outubro de 2020, o Brasil tem mais do que o dobro de militares no parlamento do que havia nos anos de sua oficial ditadura militar. Ôh glória! Eles são os guerreiros de Deus, que protegem o Brasil dos esquerdistas, dos gayzistas, das feminazis e dos imortais comunistas. A grande massa de trabalhadores brasileiros é “reformada” e acompanha a olhos nus os seus direitos queimarem junto as florestas.
Um Estado não laico, parlamentar militar ou autoritário, bem como todas essas possibilidades juntas, é o que se instaura atualmente no Brasil. Entretanto, diferente da ditadura militar direta, hoje todas as irregularidades antidemocráticas são feitas dentro da legalidade democrática. Neste sentido, quase que antagonicamente, é possível pensar que a própria democracia é “culpada” de sua ruína. Em outras palavras, será que é pelo neoliberalismo que se dá a ascensão da política ditatorial no Brasil?
Numa mão um cigarro e na outra uma caneta, como comentam os mais próximos de Wanderley, este pensador deu para o Brasil o maior legado que um cientista político poderia dar. Quem lê a história de forma crítica é capaz de escrevê-la por outras palavras e ações, é isso que Wanderley nos ensinou e que a produção artística de TRAPLEV nos diz; agora por meio de outdoors espalhados pelas ruas para que não haja dúvidas: o segredo do futuro tá na história.
Paula Borghi
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Notas [1] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. 1. ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 23.
[2] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. 1. ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 11 [3] Haiti, Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1993. [4] Quando Messias dedica seu voto ao coronel Ustral. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xiAZn7bUC8A [5] Ideologia, Cazuza, 1998. [6] No original, “a condecoração do líder cubano Che Guevara, por exemplo” [7] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem dará o golpe no Brasil. coleção cadernos do povo brasileiro, volume 5, editora civilização brasileira, p.4. [8] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem dará o golpe no Brasil. coleção cadernos do povo brasileiro, volume 5, editora civilização brasileira, p.5. [9] manifestações legítimas que foram apropriadas e financiadas por forças da direita e extrema direita; até desembocar no golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff. [10] Passeata histórica feminista, para saber mais: https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_Ele_N%C3%A3o [11] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem dará o golpe no Brasil. coleção cadernos do povo brasileiro, volume 5, editora civilização brasileira, p.5. [12] Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais. Para saber mais: https://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_de_Pesquisas_e_Estudos_Sociais [13] Secretaria Especial de Comunicação Social [14] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem dará o golpe no Brasil. coleção cadernos do povo brasileiro, volume 5, editora civilização brasileira, pp. 21-22. [15] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem dará o golpe no Brasil. coleção cadernos do povo brasileiro, volume 5, editora civilização brasileira, p.31 [16] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem dará o golpe no Brasil. coleção cadernos do povo brasileiro, volume 5, editora civilização brasileira, pp. 35-36. [17] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem dará o golpe no Brasil. coleção cadernos do povo brasileiro, volume 5, editora civilização brasileira, p.36. [18] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem dará o golpe no Brasil. coleção cadernos do povo brasileiro, volume 5, editora civilização brasileira, p.42.
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Paula Borghi é mestranda em Artes Visuais na linha de pesquisa de História e Crítica de Arte pelo PPGAV/UFRJ. Foi curadora adjunta da 11# Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2018), curadora convidada do Centro Cultural Hellerau no Projeto Brasil (Dresden, Alemanha, 2016), assistente curatorial de Ibis Habascal na 12# Bienal de La Havana (Cuba, 2015) e curadora da Residência Artística do Red Bull Station (São Paulo, 20013-2015). Foi co-idealizadora do espaço independente Saracura (Rio de Janeiro, 2016-2018) e idealizadora da biblioteca itinerante de publicações de artistas latinos Projecto MULTIPLO (2011-2017), premiado pelo Rumos Itaú Cultural em 2015-2016. Nos anos de 2015 e 2016 trabalhou com o Instituto Goethe no projeto Jogos do Sul, que teve como objeto de pesquisa os I Jogos Mundiais Indígenas, Palmas. Ao longo de sua trajetória vem atuando com processos curatoriais voltados a residências artísticas e exercícios de práticas democráticas.
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Para ler com o corpo
Nesta série de textos publicados no blog-revista da editora, se prescreve aquelas críticas reflexivas que necessitam primeiro da experiência de um corpo em movimento para que se possa assim ler a contingência de revolta das ruas. Como no lema da GLAC, "Para ler com o corpo" não é apenas uma frase de efeito, mas um modo de ver e tornar o mundo um laboratório político do cotidiano.
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