Legenda: Felipe Cidade, Sem título, 2011; Registro cedido pelo artista
Propondo uma espécie de ´sociologia empírica´, Tiago traz uma investigação acerca dos exercícios de vontade, principalmente os voltados para os encontros, durante esse período de pandemia. No governo e desgoverno dos desejos, quais são as prováveis relações, acordos coletivos e lógicas de contenção e vigilância que entram em atuação neste momento?
18:47 do dia 03 de Agosto de 2020, Petrus me liga no clima de felicitações pela lógica compulsória de desejar felicidades àquele que se preza, no dia que marca a saída de dentro de uma barriga essa superfície que decidimos chamar de corpo - agora capturada por entre um ciclo linear degenerativo. Minutos depois recebo a visita de Wylliana, que tramava planos para um sequestro romântico. Me encontrando convidou a subir na garupa da moto, nos dirigindo até seu quarto: destino final de todas elas quando a noite já não se faz mais entre mesas e banheiros. Os líquidos já não podem mais correr por lugares tantos.
Desses dois encontros saíram questões que seguem nesses aglomerados de palavras. O primeiro pela vontade não realizada, e o segundo pela possibilidade de culpa dada a sua materialização.
Esse texto pode facilmente ser pensado como um desserviço. Ele não serve pra nada e à nada! De um vício anárquico que ousa ainda questionar aquilo que tratados “sérios” determinaram como úteis para contextos pandêmicos. Por essa razão, esse texto se alimenta de uma estética desvalida que cata resquícios de textões de instagram, de uma "sociologia empírica" - aspada com s minúsculo e com muita matéria viva -, de arquivos críticos em blogs editoriais e de twitter’s abastados de deboche das normativas da gramática. É nesse cenário em que todas as mãos disseminam suas ficções, como sujeitos de si, com vozes/letras e verdades, que emana meu desejo de atiçar com esse registro. Como uma escritora fracassada, é pela ética do lixão que experimento as condições e inclino questões. Expertos que somos, sabemos que o texto diz mais sobre quem o escreve do que sobre os assuntos que foram propostos para escrever.
Pois bem, mas nem tanto... Durante o percurso com Willy, conversávamos sobre as adjetivações que giram em torno da clandestinidade que é sair em tal conjuntura, sem necessidades urgentes e plausíveis perante as determinações legais. Discursos nos colocam numa espécie de enquadramento criminoso por permitirmos viver o desejo do encontro ainda que sem precisão. E pior quando para a celebração de nós! Acontece que em terras Cariri-CE, os projetos de controle público para diminuição da infecção por COVID-19 foram um verdadeiro fracasso. A crise no sistema bioético - instituição/ciência/pensamento - , nessa parte de mundo que vos falo, foi comprovada pelo aumento de testes positivos mesmo em meio às medidas de isolamento social rígido. Barreiras sanitárias, policiamento de ruas e outras políticas anti pandemia obtiveram resultados insatisfatórios perante todo o bojo de investimento para o controle do medo, e o combate da expansão de corpos adoecidos pela existência do nome mais dito no ano de 2020 : COVID-19.
Legenda: Felipe Cidade, Sem título, 2011; Registro cedido pelo artista
Nas redes, a partilha de episódios de aglomeração foram tão debatidos quanto o medo da infecção pelo vírus. Na verdade, as primeiras só fazem sentidos perante o papel policialesco que todos os sujeitos assumem nessa ideia de guerra da/pela saúde. Todos somos fiscais e juízes de práticas alheias, e isso nos permite a exposição e a condenação. Empoderados que somos, apontamos o quão irresponsáveis são os outros, ainda que estejamos em aglomerações. Mas ora, aqui só está a família! É essa afirmação que aponta, inclusive, para um desafio explicativo, oriundo das instituições que estão à frente da administração da pandemia. O medo parece perder lugar para a querença. Quem ama cuida de que/como? A confiança não poderia ser um sentimento covarde; a crença e o desejo mais uma vez assumem seus postos de forças que dilaceram os pressupostos para uma sociabilidade responsavelmente legal. O fluxo é clandestino e o crime permite o gozo. O gozo suspende a pandemia?
Diante disso, as responsabilizações são postas: Vocês naturalizaram a morte!
Confesso que, para mim, soa repetitivo dizer que a morte “não-natural” é o componente básico de construção desse sistema-mundo. A colonialidade, o capitalismo, o imperialismo, resultam de que? A morte é naturalizada porque, para que a vida da norma seja protegida e expandida, é necessário que o constituído enquanto outro, morra. As experiências históricas, analisadas pelos estudos socio-filo-antro-geo-lógico sobre poder, vida, saúde e segurança, já mais que comprovaram isso. Se encontros durante a pandemia naturalizaram a morte, é preciso entender que não estamos diante de um fenômeno novo. Talvez devamos mudar o argumento? Romper com a linguagem para arriscar a afetação?
Continuemos… o apelo a essa solidariedade universal, sem uma análise mais contundente acerca do valor de vidas e da perda pela morte, levando em consideração os marcadores sociais de diferenças, me traz à tona mais uma vez a ideia de que toda vida importa de forma equivalente. Antes fosse, o pano de fundo desse imaginário, o valor que cada ser vivente tem numa ordem “global”. Mas sabemos que, na verdade, essa máxima - vocês naturalizaram a morte - sobressai porque, hipoteticamente, todos estamos igualmente sob ameaças e serventia de vidas igualitárias. Essa mesma estratégia de enunciação, que reúne todos num mesmo campo de vidas perdidas e mortes naturalizadas, é o meio de comando que separa e organiza em contextos outros quais vidas de fato devem ser concebidas como vidas, e passíveis de enlutamento¹ (BUTLER, 2015). Vale repetir com entonação de falas em marchas: quando só jovens negros são alvo de balas da polícia, é natural que eles morram, inclusive sob a prerrogativa pouco criativa - KKK - de que se justifica porque há mais pretos que brancos no Brasil. Quando a violência no trânsito são as principais causas de morte, é natural porque há muito automóvel e, no estágio em que estamos, só se pode usar o tempo de forma eficaz por sobre as máquinas... dentre tantos outras que por esse fio racional deslizam...
Legenda: Felipe Cidade, Sem título, 2011; Registro cedido pelo artista
É preciso, portanto, voltar algumas casas e entender que é justamente por não desenvolver laços valorativos com determinados sujeitos que as mortes deles não nos dilaceram ainda que, arrisco a dizer, sejam estas os pais dos amigos, os primos da vizinha, ou sujeitos “conhecides”. Quando não interfere de forma a alterar o rumo das nossas vidas, o enfrentamento é mediado de forma diferenciada. Tanto que a reflexão posta sempre será: está muito próximo, pode ser meu pai. A relação que estabelecemos com a morte depende do grau de valor que cada vida representa nas nossas. Isso, mediado pelas mais variadas forças que compõem o social e constroem a nossa solidariedade. De onde enceno, isso não é nem tanto sobre não sentir, é muito mais sobre a possibilidade de "ser honesto", e aceitar abdicar de determinados modos de vida para de fato não contribuir com mortes “alheias”. Penso também que isso possa não ter a ver necessariamente com o desejar morte de ninguém. Não esqueçamos que a memória é uma questão imprescindível para essa nossa experimentação filosófica, e que o esquecimento é um elemento importante quando discutimos enlutamento.
*** Gostaria aqui, de solicitar a suspensão dos blocos monolíticos (ROLNIK, 2016)² protocolados que ousam encerrar os debates nos pares de oposição binária. De Lulista à Bolsonarista todos sabemos performar! Os personagens não se equivalem mas fazem parte do mesmo espetáculo***
Se por um lado nos tornamos associados de uma “morte anunciada”, ainda que incerta, por outro nos orgulhamos de ser cúmplices do projeto de controle e disseminadores desse. A legalidade e a infração mais uma vez como valores determinantes do nosso imaginário, para estabelecimentos de relações com si e com outros. Me parece, no entanto, que nesse jogo, o medo mesmo é de ser considerado assassino. Somos bons demais para matarmos alguém. No limite, imagino que uma fronteira assegura que não se é nenhum nem outro, mas que passa por um e outro. Um fluxo que já não mais se situa aqui ou acolá, mas nas possibilidades de experimentação que desafiam a administração pública do contexto pandêmico.
O nojo do outro, o medo da infecção, o apontamento, ou coisas dessa ordem, só se confirmam quando tais corpos não fazem parte do nosso circuito curado, imune e feliz. Assim, é possível identificar que há outros pressupostos que compõem a vida em sociedade que são postos em questão para decisão do encontro ou não durante a pandemia, e a consideração do risco de infecção.
Vale pensar, mais uma vez, que toda solidariedade é seletiva, no sentido em que há uma série de elementos que são selecionados para a realização de tal ação. As matérias jornalísticas que tenho visto sobre as pandemias utilizam dos elementos mais característicos dos programas policialescos, e parecem querer desprender-se dessa dimensão - solidariedade- da vida, para poder edificar seus planos de gestão das mesmas a partir de uma suposta universalidade. Se pensarmos, por exemplo, que a pandemia fez o mundo passar por um processo de presença de morte que antes só África e Ásia haviam passado, talvez nossos olhos possam expandir as possibilidades de investigação dos “criminosos encontros festivos” durante tal conjuntura, entendendo as múltiplas forças que mobilizam os encontros, aqui não mais situadas apenas nos grandes conjuntos das perspectivas sociologizantes, mas sim, no íntimo de cada sujeito e nos acordos com seus circuitos. Quando se é urgente pensar sobre a possibilidade de morte?
Adiante me questiono: o que leva uma pessoa a resolver encontrar-se e festejar, como se suspendesse naquele tempo/espaço o contexto pandêmico? Deixo respostas eficazes para os postulados que arriscam reduzir as nebulosas e múltiplas agências das ações sociais à explicações tão bem amarradas que não possibilitam dúvidas. Considero aqui que os discursos hegemônicos já não me parecem interessantes para explicar um furo em massa de uma pandemia. Nada impede o encontro ao mesmo tempo que nada o justifica. O encontro acontece na desobediência, as forças oficiais coercitivas não resultam. Me parece necessário, assim, complexificar as hipóteses para apontar para análises mais satisfatórias. Quem achamos que colocamos em risco? Quem assume o risco? Quem é o vetor da doença? Quem? Quem? Quem? O que? Do que? Pra quê? Em todas as experiências históricas houve desejos e correlação de forças desiguais no campo; estas, por sua vez, não se explicam apenas por dimensões macros… Me parece necessário pulverizar as interpretações.
A produção desse texto se deu pela própria experimentação do encontro e os desconfortos providos destes. Não me interessa pensar uma justificativa para tal acontecimento.
Fico a imaginar, também, que uma série de comentários serão apresentados acerca desse texto. Dentre eles, muitos o acusarão de um texto minimamente irresponsável. Diante essa pre-visão, considero que seja importante reafirmar que não estamos acostumados a lidar com a produção de interpretações que não andam pelos caminhos que ajudamos a alargar, por sempre pensarmos a partir dos nossos planos partidários - imagine as variáveis de se pensar "partido" -. Quando apresentamos uma possibilidade de reflexão para algo que está fora disso, tal artefato é considerado como perigoso.
Lembro, assim, que no começo da graduação em Ciências Sociais, algumas bocas esbravejavam que a sociologia deveria voltar a ser perigosa, e a característica perigosa desta era justamente apresentar a realidade, com R maiúsculo, se queira. Isso se apresentava como fatal, porque diziam apontar para a morte de algumas ficções e relações materiais de existência.
Quando penso uma espécie de "sociologia empírica" - aspada com s minúsculo e com muita matéria viva - , confesso que estou infectada por essa perspectiva. Afinal, para além da “naturalização da morte”, o que podemos imaginar/dizer de todas essas pessoas se aglomerando durante uma pandemia, mesmo com o tanto de investimento para a não realização disso? Quais forças emanam desse bojo que a legalidade não consegue capturar, e a sensibilidade borra e foge à todo instante?
Legenda: Felipe Cidade, Sem título, 2011; Registro cedido pelo artista
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Tiago Alexandre dos Santos, também Manguebixa. Tem experimentado produções em formatos diversos a partir das questões que movimentam seus interesses de investigação e partilha. Todas apontam para um fazer da/na/por/pelas diferenças, andando/pedalando por caminhos híbridos no provocar de confluências. Uma Sociologia que brinca e zomba da separabilidade da racionalidade técnica. É bicha, preta, pobre e das matas, bacharele em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri - URCA e mestrande em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE.
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Notas do texto: [1] BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
[2] ROLNIK, Suely. A hora da micropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2016.
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Quarentene-se
Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com
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