Legenda: Giulia Frascino - Grão de Corpo, 2016 (ainda em processo);
Foto: Registro cedido pela artista
Fabiana Vanz aborda uma perspectiva delicada sobre o adoecimento da psique, colocando sua própria experiência em discussão. Se um dos aspectos perversos da "loucura" é o fato do sujeito ser visto como alguém incompartilhável, a autora, aqui, depois de ter transitado por essas fronteiras, traz a palavra como possibilidade de botar-se de volta em relação.
Sentou-se no chão do pátio de piso alaranjado em escamas de peixe, colocado durante a reforma depois que compraram a casa. O Zé lhes havia dito que podia deixar tudo com ele, que ele era bom de acabamento. Eles duvidaram um pouco, mas confiaram no trabalho do Zé. Ele disse: em escamas de peixe, para quebrar a monotonia dos retângulos e seus ângulos retos. Foi uma sugestão do Zé, e eles concordaram. Imaginou o trabalhão que deve ter dado para colocar. Antes disso, eles tinham discutido com o Zé porque a tabeira da cozinha tinha ficado torta, uma bobagem. Mas o piso ficou realmente bom. Pensou, naquele dia, sentada no chão, que o Zé estava certo. De pernas cruzadas, reparando no piso em escamas de peixe e lembrando-se da reforma, das ordens e da hierarquia envolvida entre prestador de serviço e contratante, teve medo de descobrir-se Deus(a): senhor(a) do universo. De ter que mandar e desmandar. Sentiu ser isso um peso imenso. Tinha passado por algumas experiências do tipo, de delírio de grandeza, então, o que mais a assombrava, desde o acontecido, era saber-se no controle. Imaginava, em seus delírios, que qualquer palavra que pronunciasse, ou gesto que fizesse, seria determinante para o andamento do mundo, um peso tão imenso que existir tornava-se algo minado pela própria existência, uma existência pautada em um poder sobre-humano. Daí em diante, tornou-se um martírio toda e qualquer posição de autoridade sobre quem quer que fosse. Vivendo, a partir de então, de certo modo, à sombra de uma paranóia castradora de seus movimentos e comportamentos, a escrita tornou-se um possível abrigo e lócus no qual ainda era possível respirar. Naquele dia olhou para as formigas: sabia que pisava em formigas sempre que caminhava. Sabia também que era inevitável. Sentou-se no chão, as pernas cruzadas, e olhou para as formigas, quis saber que não as controlava, mas se viu gigante perto do tamanho e da fragilidade de uma formiga. Quis sentir-se pequena, mas era imensa perto das formigas. Então olhou para elas por horas, para certificar-se de que, apesar da diferença de escala, elas eram alheias a sua vontade. Apreciou-lhes o suposto livre arbítrio. Pensou em como tinham uma organização rígida e alienada... Quis “anarquizar”, passar o dedo no caminho de formigas, mas não teve coragem. Lembrou-se de Arturo Bandini no episódio dos caranguejos, e de quão patética é esta vontade de em tudo interferir, ainda que pautada em boas intenções. De noite, sonhou com o livre arbítrio das borboletas.
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Legenda: Leonilson - Da qualidade de ser forte, 1991
Foto: Revista do programa de exposições do Museu Victor Meirelles
Um privilégio poder escrever. Isto acima, que acabaram de ler, é minha experiência com o piso em escamas de peixe, e da loucura que vivi por diversas vezes durante uma ou duas semanas. Nem todos têm espaço para falar de si, e aí temos um problema: porque para uma boa parte não lhes foi dado o espaço. Poder se narrar, além de ser uma forma de simbolizar acontecimentos que nos viram de ponta cabeça, é abrir sentido e existir em palavras, gerando uma nova significação em que a existência seja ainda possível e o ar respirável. Fazer conexões possibilitando até mesmo a existência de algo que antes inexistia, já que aquilo que não pode ser nomeado não é assimilado por nós, seres de
linguagem. Não somos como as borboletas, o que quer dizer que ficar no casulo durante a quarentena não irá fazer de nós melhor resolvidos, mais lindos, mais empáticos ou melhores. Assim, o mundo também não irá mudar porque alguns de nós pudemos fazer yoga três vezes por semana. Igualmente, não me tornei mais sã na quarentena, com a possibilidade de supostamente “olhar para dentro de mim”, mesmo tendo tido algum tempo para equacionar problemas que me incomodavam. Também não somos formigas, o que quer dizer que ainda podemos reorganizar nossos caminhos em busca de uma sociedade menos alienada. Mas, de repente, estamos hoje submetidos aos acasos da natureza, frágeis como...formigas. Há que se pensar que algo acontece em períodos de isolamento e fragilidade. Eu tenho escrito muito mais, e lido um pouco mais. O que me faz crer que, este olhar para dentro de si, só pode gerar algo potente se ele vier atrelado de um olhar para o outro. A linguagem, sendo o grande lugar de encontro com o outro, e o Outro, deve então ser repensada. Por isso, apesar do isolamento, a importância de se manter laços: com o livro, o irmão, o amigo, o desconhecido, o vizinho. Com a Sociedade. Com as Discussões Contemporâneas. Enfim, tendo que passar toda a parte do meu tempo onde hoje a gente toda chama de “lar” (há que se lembrar que há menos de dois séculos, a ideia de lar mal existia.), deu também para repensar os deslocamentos e o tempo que passamos neles, fora de nossos casulos. Principalmente deu para olhar para a casa. E lembrar-me dos envolvidos na reforma, seu trabalho e mão de obra, e das relações que se estabelecem nestes contextos, e que vivemos na maioria das vezes de forma alienada. Para onde quer que olhe na casa em que vivo, hoje, noventa por cento do meu tempo, tudo foi trabalho de alguém. E agora é meu: a louça, as roupas, a limpeza. Não somos borboletas, o que quer dizer que não estaremos prontos, um dia, para um outro viver de forma mais saudável das relações, principalmente aquelas que envolvem o lar e o mundo do trabalho de uma só vez. Há que se fazer no caminho. Também, diferente de borboletas, somos presos a um fazer linguagem muito específico. E nosso livre-arbítrio parece ínfimo perante suas leis e regras, que existem para muito além de nosso exercício de vontade. Então, a linguagem , que é a base de nossas relações, e os significantes que empregamos, como já se sabe bem, estão carregados de mundo, da sociedade e de seus preconceitos. Agora em casa, sem encontrar quase ninguém a não ser de forma virtual, tenho a oportunidade de rever as minhas formas de me comunicar. E de perceber o quanto esta comunicação, de forma global, pode interferir na episteme de uma época. Assim, vou me apropriando cada vez mais da ideia que dar voz é possibilitar novas formas de compreensão. Andei lendo sobre o lugar de fala, isto que não se trata da experiência individual de cada um, mas do lócus social que os sujeitos (sempre sujeitos de linguagem) ocupam. E andei me perguntando, quantas vezes, ao nos relacionarmos, nos perguntamos sobre o lugar de fala de cada um, já que, sendo algo que não formigas ou borboletas, ainda somos capazes de rever estes lugares e escutar as vozes dos que geralmente não foram não tiveram escuta. Cultura é mobilidade. Diz-se que o termo lugar de fala surge em comunicação com a necessidade de se entender a que grupo um dado veículo de comunicação se destina. Assim, pensei comigo que no mais das vezes se confunde preconceito linguístico com lugar de fala. Será que o silêncio dos dias de quarentena, o isolamento, poderiam nos levar a um lugar em que, no reencontro, fossemos capazes de compreender melhor o lugar social que ocupamos? Como os laços com a sociedade seguem sendo revistos? Andei escrevendo como as experiências modernas unificadoras, universalizantes e colonizadoras abafaram toda e qualquer possibilidade de se legitimar, nos meios dominantes, os discursos que não fossem aquele da classe alta, branca e européia. Pensei o quanto, na contemporaneidade, a literatura vem sendo enriquecida com a circulação de autores oriundos de lugares de fala antes denegados. Então, poder escrever é um privilégio. E se hoje posso contar sobre minha experiência do piso de escamas de peixe, e da minha loucura, é porque aprendi algo que muitos não tiveram a oportunidade de exercício: que escrever, assim como falar, é potência poderosa de transformação. E se, como nos ensina a crítica literária das universidades hoje, o autor só existe enquanto escreve, ter um texto publicado é poder participar da episteme de um período. Então, tive a sorte de poder publicar um livro importante para mim, que falava desta condição minha ligada às experiências de loucura, e de toda a fragilidade subseqüente. Isto que, em um mundo em que a loucura é vista como perigosa ou de forma bastante pejorativa, sempre narrada por um observador, não é pouco. Foi aí que me entendi em posição de minoria. Sendo uma mulher branca pude, muitas vezes, se não contornar, pelo menos amenizar alguns aspectos do machismo dominante. Então, ao me deparar com a “loucura” sou, de repente, minoria, essa que pouco ou nada teve condição de fala na história. Quantos são os relatos de “loucura” que nos são oferecidos, que não sejam contados por terceiros? Em que não se trate o sintoma, mas o sentir? Além de tudo, topamos aqui e ali com alguém chamando o presidente de louco nas redes sociais, como se a loucura fosse o mesmo que ser incapaz, desonesto ou ruim; com alguém que se defende de um ato brutal e preconceituoso a partir da afirmação de uma suposta condição mental que invalidaria este ato. Se, para vencer todo e qualquer preconceito é preciso reconhecê-lo e discuti-lo, para se vencer o adoecimento mental também é preciso reconhecê-lo e discuti-lo. Ser “louco”, muitas das vezes, é estar à margem. Eu não estou, não no sentido da classe social, mas estou nesta minoria que pode dizer que já cindiu o laço social por questões de ordem psíquica. Temos poucos relatos destes adoecimentos por parte do sujeito que adoece. Lembro rapidamente do famoso texto de Schreber, do final do século XIX, analisado por Freud e em seguida Lacan. Assim, seguimos confundindo as más condutas e preconceitos com loucura, distorcendo a questão do adoecimento, e invalidando qualquer possibilidade de fala , pois o que diz o “louco” não se escreve. Sei, com toda a clareza, que poder falar de experiências similares às que vivi não é algo comum: o tratamento, os remédios, os delírios, as recaídas, a reinserção e etc. E sei que estas falas são vistas, como nos ensina Foucault, com grande relação de alteridade, pelo menos a partir de Descartes e a hegemonia do pensamento racional que se segue. No entanto, trata-se de uma experiência humana e, como tal gera conhecimento. Não posso evitar de lembrar-me de Lacan dizendo que todo o conhecimento é paranóico, ou seja, psicótico; ou de uma peça presente em um museu que trabalhei, uma casa-museu, que ficava no hall de entrada com os seguintes dizeres: “Demócrito nega que tenha havido qualquer poeta isento de loucura”. À lembrança segue-se um alívio de me reconhecer um pouco menos à margem. Tive a sorte que pouquíssimas pessoas têm de ser publicada e de galgar um lugar de fala dentro do contexto do adoecimento psíquico. De existir em texto, falar de um lócus. Esperando, neste sonho de quarentena que, mesmo que não tenhamos o livre-arbítrio das borboletas, tenhamos ao menos a linguagem em construção e a cultura sempre em mobilidade. Um longo tempo de vida para repensarmos estas relações e uso das palavras, o nome das coisas e como acontecem.
Legenda: Giulia Frascino - Grão de Corpo, 2016 (ainda em processo);
Foto: Registro cedido pela artista
Moro na escrita. Só por agora, esse instante decisivo, em que me meti a escre-ver. Da escolha: captar um nada de existência por segundo, entre palavras e paredes erguidas de sintaxes mal construídas, o pau a pique elaborado ao acaso. E o barro que molda é mais flexível que as palavras que dizem, rijas. Mas moro bem, nelas. Ainda assim. Refúgio, entre letras que nada significam moldar o texto é vencer a matéria, mármore e madeira. Matéria prima, palavras, apenas edificam meu esconderijo. De ser apenas um vida finita. E morro também nelas. Porque as palavras me matam. Por que lá estou, morta nas palavras anteriormente pronunciadas. Resta o leitor. Ator ativo e vivo. Quando as pronunciava ainda vivas, eu e palavras, vivemos bem. Agora mortas no papel, este que permite que o texto siga, não eu, pela eternidade impossível da escrita.
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Fabiana Vanz Dias é formada em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes, tendo concluído o curso em 2013, com o trabalho de conclusão de curso em linguagem da Performance. Foi professora de francês e educadora, tendo trabalhado em museus e exposições culturais em São Paulo, onde mora, no bairro do Tucuruvi, Zona Norte. Hoje trabalha com escrita, tendo publicado um livro pela Editora Patuá, Sobre a coragem do medo e outras loucuras sãs. Faz terapia lacaniana há cinco anos. Ingressou na faculdade de letras francês na PUC- São Paulo no início dos anos 2000, mas não concluiu o curso.
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Quarentene-se
Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com
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