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 CONTEÚDO 

NÃO EXISTE REVOLUÇÃO INFELIZ: preâmbulo — Marcello Tarì

Atualizado: 19 de jul.


Memolotov no 1° de maio de 2024 de São Paulo, com GLAC e n-1 edições



Em “Não existe revolução infeliz: por um comunismo destituinte”, Marcello Tarì desafia o status quo ao repensar radicalmente a tradição dos movimentos revolucionários em meio à crise civilizacional que assola o mundo contemporâneo. Para isso, o autor revisita momentos cruciais, desde a Revolução de Outubro até os movimentos sociais mais recentes, como a insurreição argentina de 2001 e o Occupy Wall Street, e como eles identificam uma urgência criativa e disruptiva que permeia nossa era.

 

O livro é uma provocação intelectual e uma chamada à ação, que desafia os leitores a repensar o comunismo não como uma utopia distante, mas como um movimento real e tangível capaz de transformar o presente. Com uma mistura única de sofisticação e urgência, Tarì convida-nos a considerar o que significa viver em uma época marcada pela incerteza e pela possibilidade de mudança radical.


No Preâmbulo da edição, publicado integralmente a seguir, Marcello Tarì discute a posição do militante revolucionário diante da passagem do tempo, do projeto de transformação do mundo, sua relação com a sua identidade social e a sua eventual destituição. Tàri fala em uma "lenta e feliz dissolução" em meio a uma revolução vitoriosa, em tom que ecoa, talvez, em Camus precisando imaginar um Sísifo alegre, e escreve: "Não basta desviar: o presente deve ser interrompido, a interrupção cria a possibilidade da passagem. A saída revolucionária do presente, além do mais, parece a única opção válida diante daquela do fechamento, agitada atualmente pelo fascismo em todos os níveis, tanto institucionais quanto existenciais. Então, os perigos ocultados na pergunta originária em relação à possibilidade de transformação do tempo estão sob os olhos de quem queira vê-los.".


Boa leitura!



Preâmbulo

Marcello Tarì

tradução Andrea Piazzaroli



Quando será consertado o mundo do avesso? [1]

— Franz Kafka a Milena Jesenká Pollak



Como uma época se torna uma Era, e dela nasce um novo Éon?


Ou ainda:


Como uma revolta se transforma em uma insurreição, e esta em uma revolução?


Há séculos que as gerações se confrontam com essa questão irresoluta e sempre inevitável. Pode-se dizer que revolucionários nascem no momento que os indivíduos se colocam aquela questão e começam, junto com outros, a elaborar respostas. É uma batalha mundana e espiritual que já deu vida a experimentações audazes e aventuras estupendas, as quais — é verdade — em sua grande maioria foram derrotadas. Ademais, muitas lutas terminaram por causa do abandono daquele que questiona. A astúcia da História sempre leva vantagem sobre o escândalo da verdade. Por isso, Franz Kafka dizia que, para os movimentos espirituais revolucionários, os quais são sempre movimentos contra a História, é como se nada tivesse acontecido ainda. Não obstante, ou talvez por isso mesmo, aquela questão sempre ressurge das ruínas do tempo, intacta.


Chegados ao fim de uma civilização — a nossa, qual outra poderia ser? —, a interrogação é carregada de urgência, veste um caráter inadiável, fica mais bem contextualizada, torna-se

a reflexão silenciosa de uma inquietude sempre mais difundida. Afinal, são perguntas simples, repetidas muitas vezes, de lugares distantes entre si. Como pôr fim a um domínio que não quer terminar? Como acabar com a miséria de uma existência cujo significado nos foge por todos os lados? Como encerrar este presente, cuja planta arquitetônica parece a de uma cela capaz de conter uma população inteira? Como extinguir uma catástrofe que já não pode avançar, pois está em toda parte e começou a escavar sob os pés do anjo da história? Enfim, e sobretudo: como mover o eixo do mundo, orientando-o sobre a abscissa da felicidade? A resposta é inseparável da pergunta, a qual deve permanecer imóvel, porém aberta ao uso de quem a sinta aflorar dentro de si. A verdadeira doutrina consiste somente em perguntas, afirmava o historiador da Cabala. Então, a resposta se inscreve na existência, quando esta coincide integralmente com a pergunta.


Nestes tempos, todavia, parece que é o próprio mundo, já exausto, a nos propor o questionamento antes de abandonar a cena. Exausto porque consumou todas as suas possibilidades — de agora em diante, só o impossível conta. A História, quando se aproxima do fim, torna-se imensamente pesada de suportar, e já tem algum tempo que o seu progredir significa somente a intensificação da sua catástrofe. A verdade, sepultada sob enorme quantidade de destroços do progresso, é que nunca existiu um mundo como o do nosso presente, recluso no quadrinômio Ocidente-Modernidade-Democracia-Capitalismo, e sim uma Terra que jamais parou de se modificar em uma multiplicidade de mundos. Mundos que aparecem unificados na separação e hierarquização da cibernética, do capital, da metafísica, do espetáculo.


Não faz muito tempo, havia a possibilidade, ainda que subalterna, de nomear a pluralidade dos mundos. Mas o mundo atual, que se representa como uma unidade de sentido singular e única, eliminou do regime discursivo dominante, até mesmo as modernas definições políticas de segundo, terceiro ou quarto mundo — exatamente como fez com as classes: um só mundo, aquele do capital, e uma só classe, a burguesia planetária. Ora, aquele mundo único, aquela concreta abstração que nega a existência a todos os outros mundos — em uma palavra, “a civilização” —, é precisamente o que está ruindo sob o peso do seu catastrófico triunfo. Converter este colapso, esta catástrofe triunfal, esta impossibilidade, na redenção de todos os mundos é a aposta dos revolucionários. Vencer aquele único mundo antes que colapse ruinosamente sobre a humanidade, no fundo, seria a única maneira racional de confrontar a vontade frenética de apocalipse do Ocidente.


Os revolucionários são os militantes dos fins dos tempos, operam dentro dessa temporalidade para a realização de uma felicidade profana. Mas é necessário ter consciência de que a exaustão das possiblidades deste mundo também significa o esgotamento das ações políticas que viviam nele. Uma identidade política que, como este mundo, tenha exaurido todas as suas possibilidades deve ser destituída, ou então continuará a existir como um semimorto, como um zumbi. Assim, para agarrar o impossível, parece que não resta outra alternativa se não modificar aquela forma de vida especial, aquela máscara que foi a militância revolucionária moderna, da qual restam na memória apenas estilhaços, fragmentos, ruínas. Uma experiência sobre a qual falta fazer toda uma ontologia histórica. Por isso mesmo, a atual relação com ela é a de um luto não resolvido. Os K-way neri [2], que se tornaram uma presença constante em toda manifestação em que acontece alguma coisa, parecem estar ali justamente para recordar esse luto ao resto do cortejo.


Mas, atenção: não se trata de ir contra a militância, cuja história merece todo nosso respeito, e sim adotar a estratégia paulina do “como não” — que os militantes sejam como não militantes. Escreve Giorgio Agamben: “O ‘como não’ é uma deposição sem abdicação. Viver na forma do ‘como não’ significa destituir toda propriedade jurídica e social, sem que esta destituição funde uma nova identidade”[3]. Em primeiro lugar, isso significa liberar quem vive numa forma que o obriga a ser alguém, ou ainda, a viver como se fosse alguma outra coisa, algo que seria mais verdadeiramente presente, porém colocado como um fim exterior. Já para o militante, viver no “como não” significa escolher o encantamento que o quer investido em um dever infinito e em uma entrega absoluta.


Máscara e face não podem mais ser sobrepostos e separados a bel-prazer, se não se quer repetir a tragédia dos revolucionários de profissão que Bertold Brecht põe em cena com “A decisão” em 1930 [4]; afinal, já sabemos que não há rosto que não seja máscara, decidir a qual ser fiel cabe a cada um. Tanto os militantes do partido quanto o jovem companheiro protagonista daquela peça estavam errados: uns porque estavam cegos pela ideologia e o outro porque era de um sentimentalismo voluntarista. Ainda que aquela época possa ser pensada como uma magnífica tragédia, para nós, a “linha de conduta” não pode mais ter a pretensão de ser reta ou governada por uma série de “disposições” e “medidas”; em vez disso, ela faz uma curva muito peculiar, espiralada, dobra-se em direção ao centro e ao mesmo tempo para fora, sem fim, sem cume como a torre de Tatlin.


Não há nenhuma necessidade, portanto, de fugir da própria vocação. Da militância, diria o filósofo, pode-se “fazer uso”, pondo-a em tensão com a temporalidade revolucionária e desativando sua inclinação a se tornar uma identidade tirânica, uma forma separada da vida, o fio condutor de uma substância moral da qual procedem as suas gesticulações, os seus comportamentos tão facilmente separáveis do sujeito que os opera. “Vocês não são mais vocês mesmos [...] são folhas em branco sobre as quais a revolução escreve as suas instruções”[5], diz o escritório central aos agitadores, no drama didático de Brecht; a revolução sempre significou a destituição das identidades atribuídas a nós por este mundo, e continua a sê-lo, mas o militante não pode ser a quintessência da política dos meios por um fim, um corpo e uma voz que se tornam instrumentos através dos quais se determina a vontade progressiva da História; uma vanguarda externa, sobretudo a si mesma, ou seja, externa à própria vida e à dos outros. De fato, na reescrita que Heiner Müller fez daquele drama, quarenta anos mais tarde, com o seu Meuser [6], a atividade do militante — ou seja, assassinar os inimigos da revolução — é vista pelo que realmente havia se tornado: um trabalho, ou seja, a própria revolução se torna um modo de produção de inimigos.


Portanto, no devir revolucionário, é a si mesmo que cabe destituir o Eu junto com a realidade inimiga. Ao mesmo tempo, a autodestituição do militante envolve consentir na deposição da própria identidade social, desativar o dispositivo da ideologia e empunhar a potência daquela máscara, daquele modo singular de existir que é a militância — que é uma forma de vida que se desenvolve expondo uma relação específica consigo e com o mundo, que se funda na fidelidade a uma verdade, a verdade de um encontro que uma pessoa faz na própria vida, não com indivíduos, nem com uma ideia, mas com uma força. Para os revolucionários, um verdadeiro encontro é aquele que não só faz existir uma amizade política através dessa força, mas o que oferece a qualquer um a possibilidade de entrar em contato consigo mesmo e, então, tomar uma decisão sobre a própria vida, junto com outros. Falando a língua das primeiras comunidades cristãs, diremos que quem teve aquele encontro recebeu a graça, ou ainda, a potência. Potência de ser nada, ou seja, tudo. Nada e tudo são a verdade daquela máscara.


A imagem daquela estranha figura do militante vivo como não militante poderia parecer quase incompreensível na dialética singular que habita entre o interno e o externo do próprio ser. De fato, Paulo de Tarso, no capítulo dedicado à graça na segunda carta aos Coríntios, articula a descrição da vida dos componentes da sua comunidade deste modo: “[...] em tudo recomendamo-nos a nós mesmos como ministros de Deus; na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns [...] como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos e, entretanto, bem-conhecidos, como se estivéssemos morrendo e, contudo, eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo”[7]. Se esta última frase, com toda evidência, retornaria séculos depois no famoso verso da Internacional, “Nós que não somos nada, seremos tudo”, só podemos dizer que Paulo é mais convincente, na sua insistência sobre a atualidade integral da potência, do que o “seremos” do hino proletário. Além disso, a parte da frase traduzida do grego paulino normalmente como “quem não tem nada” (ὡσ μηδεν) evidentemente retoma o ὡσ μη, ou seja, o como não, portanto, poderia ser melhor traduzida como “gente que é como não tendo nada”; quer dizer, pessoas que depõem todos os seus pertences e neutralizam toda sua identidade para permanecerem si mesmas. Ao mesmo tempo, o verbo usado por Paulo na segunda parte da frase, κατέχοντες[8], significa também “segurar”, “conservar”, “manter firme” e “habitar” — significados que parecem mais consoantes do que aquele normalmente usado nas traduções correntes da epístola (“possuímos”) e que nos dão a possiblidade de pensar de maneira diferente da usual, ao menos nesse caso específico, a função catecôntica [9] singular da figura à qual nos referimos aqui. Exatamente por serem pobres, destituídos de toda e qualquer posse e identidade, têm a força de possuir consigo todo o resto, de conservar a verdade, de manter firme seu propósito e habitar plenamente uma forma de vida.


Marx, para quem o proletário se torna político, a potência liberadora da humanidade inteira, justamente ali onde não há nada, talvez concordasse com um ligeiro aceno de cabeça. “Gente que é como não tendo nada” não se refere, evidentemente, somente aos bens materiais, mas aos predicados e qualidades valorizados socialmente que parecem enriquecer o indivíduo, enquanto, na verdade, não fazem mais do que o distanciar de si mesmo e da potência, entregando-o à alienação de uma forma de coletividade qualquer, sem alma, pois é incapaz de conduzir uma experiência verdadeira. Nesse sentido, a pobreza, o não ser socialmente, é a forma da nossa liberdade porque permite fazer uma experiência radical de si mesmo, a de ter uma intimidade com a própria existência. Se produzir uma experiência — o que significa também possuir, manter, entreter, habitar uma potência — só é possível com outros, é também verdade que somente uma força composta de indivíduos que sabem o que significa a solitude, ser somente aquilo que se é, que têm uma relação com a vida e com a morte, que conhecem tanto a felicidade quanto a tristeza, tanto a resistência coletiva quanto a individual, pode realizar uma verdadeira experiência. O problema dos “coletivos” é que, tão logo se institucionalizam, removem as experiências que realizaram; a sua informalidade rígida é incapaz de mantê-las e, por isso, sua elaboração necessita da expressão livre das singularidades e do comunismo como disciplina. Brecht tem uma bela maneira de indicar como a liberdade individual pode se encontrar com a disciplina coletiva: “improvisação com um propósito determinado”. Em todo caso, nenhuma coletivização nunca poderá impor artificialmente o comunismo, nem substituir ou anular o trabalho do eu sobre si mesmo; e são exatamente aqueles que começam a realizar, um por um, este trabalho, os que podem dar vida a uma comuna — que constitui uma força de gravidade coletiva a sua volta, corrigindo o egoísmo individual. Essa é uma das diferenças das mais importantes entre um coletivo qualquer e uma forma de vida comunista.


Seja como for, se naquela negação — nós não somos nada — está contida a destituição de toda identidade conjuntural, de todo atributo socialmente valorizador do sujeito, na sua positividade — no entanto, somos tudo — está a afirmação da potência do devir revolucionário: não são duas fases diversas, não há antes e depois. É o mesmo gesto. A destituição sempre abre um devir. O que resta do militante é a prática de uma forma de vida que vive a sua vida como incompossível com o mundo tal como é. A obra de sua existência é tornar impossível a realidade presente.


De fato, é contra o presente que nos é dado viver, o que se pode consumir e que nos consome, mas que nos é interdito o uso — que exercitemos toda a potência destrutiva de que somos capazes. Se lutar contra a História significa emitir um juízo sobre cada instante do passado, fazê-lo contra o presente só pode ser o mesmo que realizar um juízo prático sobre este. É verdade, não existe outro mundo possível, apenas uma fraca possibilidade de um outro fim para este mundo: o presente vigente, o presente dominante, deve acabar para que aquilo que vem possa finalmente ser habilitado na sua plenitude: não o fim do comunismo nem os fins do comunismo, mas “o comunismo do fim”.


Falta o povo. E faltará enquanto este presente estiver em vigor. Por ora, a brecha que a revolta nos abre é uma das poucas maneiras pelas quais aquela falta pode comparecer no mundo, ainda que só pela duração de um relâmpago. Mas, então, pode-se realmente ir contra o presente? Ou deve-se pensar em como desviar dele? De todo modo, para desviar de um obstáculo e avançar, é necessário abrir outras estradas, outras passagens, outros tempos. Abrir essa passagem significa sempre a violência de um gesto, embora não seja um gesto qualquer, não uma violência qualquer. Não basta desviar: o presente deve ser interrompido, a interrupção cria a possibilidade da passagem. A saída revolucionária do presente, além do mais, parece a única opção válida diante daquela do fechamento, agitada atualmente pelo fascismo em todos os níveis, tanto institucionais quanto existenciais.


Então, os perigos ocultados na pergunta originária em relação à possibilidade de transformação do tempo estão sob os olhos de quem queira vê-los. Antes de tudo, a couraça: a crença apocalíptica em uma temporalidade linear que nos levará diretamente ao Éon revolucionário, ou ainda, aquela em um tempo que retorna sempre igual, ocultado detrás da fruição de massa da catástrofe — enfim, as duas equivalentes. Assim, a trágica ilusão de que a chave da vitória está num exercício de vontade ilimitada, ou ainda, a demoníaca ilusão que leva a crer que é o poder a nos entregar a possibilidade da liberação: “Jamais a liberdade é propriedade da vontade”[10], Deleuze diz sobre Espinosa. As maldições do Ocidente. Ao invés disso, já está tudo aqui: não há progresso e não é eterno retorno, há somente a conjuntura de um presente que se quer insuperável, perene, infernal.


A vontade deve ser estilhaçada; o poder do capital, aniquilado; o inimigo, vencido.


Não basta perguntar a nós mesmos, aos nossos conhecidos, é necessário direcionar a pergunta para fora, para o ignorado e, especialmente, escutar a pergunta que o mundo nos faz, ouvir-lhe a pulsação no profundo de si mesmo. Saber escutar essa pergunta é um aspecto fundamental da espiritualidade revolucionária: o ritmo do mundo se confunde com o da revolta. O que é preciso sempre redescobrir junto com nossos amigos é, antes de tudo, como acompanhar o devir real do que já é aqui, agora, conosco, em meio a nós. Ser seus assistentes. Organizar-se para desaparecer nesse devir.


Aqueles que se organizam no devir da história como sua fração revolucionária sempre souberam que a verdadeira vitória coincidiria com sua lenta e feliz dissolução. Para eles, nunca existiu um lema que proclamasse “todo o poder a nós!” ou “pela nossa organização!”, mas ao povo, aos sovietes, às comunas. Sem embargo, essa é uma das flechas afiadas que Lenin atirou em 1917 com as suas Teses de abril.


O que é esse devir real? Marx dizia que “o ser dos homens é o seu processo real de vida”[11], então, o seu devir é o tempo pleno desse processo, uma “forma inalterável” sulcada de dentro para fora, saturada de uma força que pulsa ruidosamente naquelas interrupções, das quais nunca sabemos a duração. Às vezes, um átimo, outras vezes, uma década, apenas para permanecer no tempo de uma vida. Quase sempre, não sabemos o que fazer com as interrupções, não compreendemos sua potência e acabamos trocando-as por interferências fastidiosas no progredir incessante da História. Vivemos dentro delas como se estivéssemos na sala de espera do pronto-socorro. Mas é esperando que se adoeça: o real parece desaparecer em um esquema plano, o possível se torna um enfeite charmoso para exibir aos visitantes, o próprio mundo só deseja acabar — juízo sem redenção.


A interrupção não é tempo de espera, mas o tempo que traz consigo a possibilidade de tomar uma posição contra o presente, sempre, a qualquer momento, pois qualquer instante pode ser o decisivo. O fim da apatia. O impossível agarrando o mundo. É o tempo de um heroísmo menor, de uma força anônima que não suporta o calculado, o homogêneo, o constante. Pode-se escutá-la, ela tem um ritmo: inicialmente imperceptível, começa a pulsar lentamente, acelera vertiginosamente e para. Sua súbita explosão de velocidade, paradoxalmente, provoca a desaceleração da História até paralisá-la; quando tudo para, fica imóvel, “no absurdo presente — incondicionalmente verdadeiro — portanto, também absurdo — do advento messiânico”[12], escrevia Furio Jesi. É nesse instante de suspensão, no qual o passado invade a atualidade com a violência de uma tempestade estelar, que aparece a imagem de uma forma sensível do devir, um nós que ao mesmo tempo é disperso e unido, um tipo de solitude aglomerada — dos mortos e dos vivos: é o que resta daquele turbilhão do tempo, da origem de cada ressurreição que sempre está por vir. E é essa forma — contornando uma vida que excede tudo o que existe — que deve aprender como fazer movimentar o presente em mil pedaços.


Apesar de o futuro não depender inteiramente do que aquele nós seja capaz de fazer, sua formação pode ser de ajuda à realização daquele, ou então, a sua perdição. “Glück ist hilfe”, sorte e felicidade é o amparo, o socorro, dizia o companheiro Brecht [13]. O “mutualismo”, outro conceito fantasma, não serve para distribuir bens, dinheiro e mercadorias, mas é um meio para assistirmo-nos uns aos outros, cotidianamente, no devir revolucionário. Portanto: realizar a nós mesmos ou perdermo-nos para sempre no mundo? Talvez a verdadeira vitória seja ambos, juntos. A verdadeira derrota é, ao contrário, perder o mundo e nós mesmos ao mesmo tempo.


Seria necessário observar com mais atenção nossas vidas para extrair delas uma imagem e contemplá-la como se fosse um daqueles “imprese”[14], aqueles logotipos que eram a marca registrada da existência barroca. Individuar aquele ponto de interrogação existencial, cuja intensidade marcou o nosso particular devir revolucionário, qualquer coisa que ele queira dizer para e na nossa vida. O que começa sem grandes preliminares e nos ensina a estar na vertical, a sorrir, a passar pela dor, a usar nosso ódio contra o domínio, a tecer amizades, a educar a sensibilidade. Viver o comunismo como exposição coletiva ao risco extremo da existência, e a verdadeira solitude como aquilo que o comunismo nos dá, um a um. A vida, como a política, como a poesia, é sempre uma questão de intensidade. E de irreversibilidade: a verdadeira vida tem início a partir daquele ponto do qual não há mais retorno. Pode acontecer de afundar — escorre, escava, escreve, escruta —, reemergindo de vez em quando ali onde colocamos as nossas mãos, os nossos pensamentos, os nossos lábios, a nossa respiração. Intensifica-se, de novo e ainda, nos encontros, no transbordar das paixões, nas quedas ruinosas, nos amores de uma vida, na floresta do desespero, nas terríveis alegrias e nas falências fulgurantes e, enfim, se te resta algo, uma fenda sequer, reaparece. Assim como faz o Astro dourado um movimento aparente. A volta celeste é, para os homens e as mulheres, o livro do sempre insolúvel e inderrogável devir humano. Desviando o olhar daquela cena, lendo os sinais no céu, retornando à Terra.


De revolutionibus orbium coelestium [15]: o Sol é imóvel, a Terra se move.


Os raios, a vida, o tempo. É agora.


Este livro é dedicado a uma recordação de felicidade, uma daquelas que — como disse o poeta — se deve esquecer para poder realmente ser. Para que nós esperemos com paciência o retorno, como o próprio sangue, o olhar e o gesto sem nome. Quando não haverá nenhuma diferença entre si mesmo e a lembrança.
















Notas


[1] N. da T.: Há algumas edições em português do volume Cartas a Milena, entre elas a da editora Garnier, de Belo Horizonte, lançada em 2000. Esta é a frase inicial da carta escrita em Merano, sexta-feira, 11 de junho de 1920.


[2] N. da T.: Original, em italiano. Gilets noirs, em francês.

[3] N. da E.: Giorgio AGAMBEN. O uso dos corpos. São Paulo, Boitempo, 2017, p. 306


[4] N. da E.: Bertold BRECHT. “A decisão”, em Bertold Brecht — Teatro Completo, v. 3 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988) pp. 233-266.


[5] Ibid., p. 241.


[6] N. da E.: Peça de 1970. Heiner MÜLLER, Quatro textos para teatro: Mauser, Hamlet-máquina, A missão, Quarteto. Apresentação Fernando Peixoto. Trad. Fernando Peixoto e Reinaldo Mestrinel (São Paulo, Hucitec; Associação Cultural Bertolt Brecht, 1987).


[7] N. da E.: 2 Coríntios 6, 4-10. Biblia Almeida Revista e Atualizada, 1993. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/ara/2co.


[8] N. da T.: Traduzido na edição portuguesa da Biblia Almeida Revista e Atualizada por “possuindo”. Em grego, a pronúncia do termo é katechontes.


[9] N. da T.: O termo catecôntico se refere à palavra κατέχον (“cathecon”), e aparece utilizado por Paulo de Tarso no capítulo 2 da segunda epístola aos Coríntios, referindo-se a uma força que opera restringindo a manifestação integral do Anticristo. Estudado inicialmente na teologia, o termo passou depois a ser utilizado na filosofia política, notadamente na Itália, referindo-se a uma força de resistência ou constrição. Ver verbete “κατέχον” no site Biblehub, por exemplo, no artigo de Pier Giacomo Ghirardini de dezembro de 2016 na revista Tempi, “C’è da augurarsi che i poteri ‘catencontici’ non cedano al delírio degli endorsement” [“É de se alegrar que os poderes ‘catecônticos’ não cedam ao delírio dos endorsement”].


[10] N. da E.: Gilles DELEUZE, Espinosa — filosofia prática (São Paulo, Escuta, 2002), p. 88.


[11] N. da E.: Karl MARX, Ideologia alemã (São Paulo, Expressão Popular, 2009), p. 31.


[12] N. da T.: Furio JESI, Mito (Milão, Arnoldo Mondadori, 1989), p. 70. Há também uma edição portuguesa deste livro: Furio JESI, Mito (Lisboa, Presença, 1988).


[13] N. da E.: Poema “Da sorte” em Bertold BRECHT, Poesia (São Paulo, Perspectiva, 2019).


[14] N. da T.: Optamos por manter a palavra no original em italiano “imprese”, já que possui um sentido múltiplo que convém ao argumento do autor. Imprese, plural de impresa, em italiano, pode significar: empreendimento, empresa, impressão de um logotipo ou brasão, e até mesmo um objeto pessoal que uma mulher dava a um cavaleiro a fim de que este realizasse uma determinada ação para defender sua honra. Nesta frase, imprese se refere ao "logotipo"antigo que era carimbado ou marcado em cera de vela uma, identificando uma família, uma corporação ou representante de governo, com uma imagem e a inscrição de algumas letras.


[15] N. da E.: Título original, em latim, do livro de Nicolau Copérnico (1473-1543), Das revoluções das esferas celestes. Uma edição portuguesa foi publicada em 2014 pela editora da Fundação Calouste Gulbenkian, com o título As revoluções dos Orbes Celestes.

*

Marcello Tarì, italiano, é um pesquisador independente, ou, como se autodenomina, um pesquisador de “pés descalços”, também um historiador da subterrânea subversão italiana e um filósofo da destituição. Viveu nos últimos anos entre a França e a Itália colaborando para inúmeras revistas, livros e lutas metropolitanas. De forma ativa, participou daformação da Uninomade, uma importante rede europeia de pesquisadores e militantes políticos. É autor de numerosos ensaios e fundador da revista italiana Qui i Ora [Aqui e Agora]. Publicou os livros Movimenti dell’Ingovernabile. Dai controvertici alle lotte metropolitane (2007, Ombre Corte), Um piano nas barricadas: por uma história da Autonomia, Itália 1970 (2012, primeira edição DeriveApprodi; e 2019, edição brasileira, GLAC e n-1 edições) e Não existe revolução infeliz: por um comunismo destituinte (2017, primeira edição DeriveApprodi; 2024, edição brasileira, GLAC e n-1 edições). No Brasil, além das publicações citadas, foram editados dois curtos ensaios de sua autoria pela Sobinfluencia edições, em 2023: O partido de Kafka (2020, primeira edição Revista Pólemos n. 1) e 20 Teses sobre a subversão da metrópole (2007, primeira edição coletivo Plan B Bureau).


Andrea Piazzaroli é Doutora em História e Educação, em dupla tutela, pela Universidade de São Paulo e Universidade de Bolonha (2018). No doutorado, pesquisei movimentos sociais na área de educação e política durante a Revolução Culural Chinesa, especificamente na década de 1970. Mestrado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012), em que pesquisei os registros pictóricos e literários ibéricos em relação ao Império Sínico e suas manifestações artísticas. Graduação em Pedagogia na Universidade de São Paulo (2006). Experiência em ensino e pesquisa nas áreas de educação e história, tendo realizado trabalhos como professora em Organizações Não-Governamentais e na rede pública de ensino municipal em Osasco.



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