O professor e filósofo brasileiro Claudio Ulpiano foi estudioso das obras de Espinosa, Michel Foucault e, sobretudo, Gilles Deleuze. Falecido em 1999, Ulpiano é lembrado pela sua prática docente, seu meio preferido de difusão de ideias; ele deixou pouca produção escrita, mas existem transcrições e gravações de alguns de seus cursos. Uma gravação disponível na internet é de 1989 e foi proferida no Planetário da Gávea, no Rio de Janeiro. Intitulada Pensamento e liberdade em Espinoza, ela foi objeto de estudo dos autores do texto a seguir, Raoni Machado Jardim e Anderson Santos. Nessa conferência há algo excepcional, no entanto: a intervenção de Lélia Gonzalez, professora e filósofa brasileira, militante do movimento negro e do feminismo negro. No texto a seguir, os autores analisam a troca entre os dois pensadores e o que ela informa para os debates atuais. Boa leitura!
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LÉLIA GONZALEZ E CLÁUDIO ULPIANO: UM ENCONTRO SOBRE A LIBERDADE
Raoni Machado Jardim
Anderson Santos
Nosso esforço para a escrita do texto “‘Daqui pra lá eu não vejo nada’ — a ofuscante luz negra produtora de mundos: Lélia Gonzalez em uma conferência de Cláudio Ulpiano (1988)” nasce de uma descoberta fascinante, que coincide com o período de preparação do livro Psicanálise e amefricanidade: pensar a transmissão e a subversão a partir de Lélia Gonzalez (n-1 edições, no prelo, org. Raoni Jardim, Herivelto de Souza, Andréa Guerra), que será lançado ainda neste primeiro semestre de 2025. A obra é resultado das atividades da Rede Lélia Gonzalez de Pesquisa e Formação, iniciada em 2022, e reflete um diálogo intenso entre psicanálise, filosofia, história e reflexões sobre as heranças coloniais na contemporaneidade.
O texto surge de um interesse recorrente em nossas conversas sobre psicanálise: a filosofia de Espinosa. Não que conhecêssemos a sua vasta obra em profundidade, mas ele sempre surgia como um ponto de convergência entre muitos autores com quem dialogamos mais diretamente. Esse filósofo ganhou destaque, em especial, depois de discutirmos a estimulante conferência do professor Cláudio Ulpiano (1932-1999), intitulada Pensamento e Liberdade em Espinosa, disponível na internet — a qual ambos assistimos mais de uma vez.
Em uma dessas ocasiões, percebemos algo extraordinário: durante a conferência, alguém na plateia — embora a câmera estivesse fixa em Ulpiano — fez duas intervenções que transformaram completamente o rumo da discussão. A primeira, em particular, provocou uma reviravolta surpreendente na linha argumentativa de Ulpiano.
O nome “Lélia” foi mencionado por Ulpiano no momento em que passou a palavra. Investigamos mais a fundo aquela voz e o que ela dizia, apesar da precariedade do áudio. Entramos em contato com a neta de Lélia Gonzalez (1935-1994) e confirmamos: era ela quem estava ali, e sua fala não constava nos acervos da família. Esse achado nos motivou ainda mais a pesquisar as conexões entre o pensamento de Espinosa, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari — autores que Ulpiano articula em seus trabalhos — e a obra de Gonzalez, buscando compreender como a sua trajetória intelectual e política ecoava nas intervenções feitas naquela conferência.
A primeira intervenção: questionando a originalidade grega
Após apresentar conceitos basilares para a concepção de pensamento e liberdade em Espinosa, Ulpiano tomou a incursão historiográfica de Foucault sobre os gregos dos séculos IV e V a.C. para apresentá-los como criadores de uma concepção subjetiva de liberdade, exercitada e desenvolvida a partir da sociabilidade na pólis. Foi então que Gonzalez interveio. Ela questionou a suposta originalidade dos gregos, apoiando-se em estudos de Martín Bernal, que demonstram como os gregos clássicos se apropriaram de conceitos já presentes entre egípcios, semitas e indo-europeus. Para Gonzalez, a noção de liberdade já se fazia presente, por exemplo, na Teologia de Menfis.
Essa intervenção não apenas deslocou o eixo da discussão, mas também trouxe à tona um vasto continente de pensamento recalcado, mesmo para os teóricos mais libertários. Gonzalez subverteu a leitura historiográfica sobre a noção de “liberdade” ali apresentada, revelando como o paradigma de universalidade que nos chega pela linguagem e pelas bibliografias acadêmicas carrega, na verdade, uma história de exclusão e apagamento.
A luz que ofuscou: uma metáfora poderosa
Algo curioso aconteceu no momento em que Lélia Gonzalez pediu a palavra. Ao tentar olhar em sua direção, Ulpiano foi ofuscado por uma forte luz. Protegendo os olhos, ele disse: “Eu não tô é vendo nada, daqui pra lá eu não vejo nada”. Quando indicaram que era Lélia quem pedia a palavra, ele insistiu: “Sim, eu sei que é Lélia, mas daqui pra lá eu não vejo nada”.
Essa cena, aparentemente simples, é carregada de simbolismo. A luz que ofusca pode ser lida como uma metáfora para o pensamento de Gonzalez: uma intensa luz negra que escurece a razão iluminada, desafia os olhares convencionais e propõe novas formas de ver a história e a vida. Sua intervenção não apenas iluminou o recalcado, mas também cegou o que era manifesto — no sentido de desestabilizar certezas tomadas ali como dadas. Sua práxis antirracista, naquele instante, dizia muito sobre a própria produção de liberdade que ali se teorizava, talvez mais do que Ulpiano pudesse captar no calor do momento.
Nossa análise retoma alguns dos textos de Gonzalez para negritar, na esteira daquela corajosa intervenção, seu contínuo esforço em desafiar leituras eurocentradas da história, da cultura brasileira e dos processos psíquicos, enfrentando as heranças coloniais que permeiam os cânones dos campos disciplinares. A psicanálise, além de tensionada a todo momento por ela, também era ferramenta para operar subversões teóricas interdisciplinares.
A segunda intervenção: psicanálise, Espinosa e a produção da liberdade
Na segunda intervenção, Gonzalez questionou Ulpiano sobre a psicanálise lacaniana diante da abordagem espinosana, que avançava para Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari. Nesse momento, buscamos recuperar a trajetória de Gonzalez, sua relação com M.D. Magno e Betty Millan, e identificar pontes relevantes entre seu pensamento e, principalmente, o de Guattari.
Guattari defendia que o inconsciente não deveria ser aprisionado ao campo de especialistas, mas entendido como uma produção histórica atravessada pela máquina social, concernente a toda uma comunidade. Essa concepção ressoa profundamente com o movimento de Gonzalez que pensa o inconsciente no âmbito cultural-ancestral, como um tesouro de memórias que resiste à uma consciência colonizada e abre caminhos para futuros revolucionários.
Paralelos entre Guattari e Gonzalez
Em certo momento, Ulpiano se deteve na contraposição entre a leitura lacaniana — que, segundo ele, permanece presa à estrutura da família, ao pecado original e à dívida infinita — e o pensamento encantador e afetivo das linhas de encontro e alegria nos textos de Philippe Ariès, Deleuze e Guattari.
No entanto, Gonzalez apresentou uma perspectiva que não se encaixava nessa dicotomia. Seu compromisso nunca esteve atrelado à psicanálise ou a qualquer outro campo disciplinar específico. Isso não significa que lhe faltasse rigor teórico — pelo contrário. Seu rigor era justamente o caminho para construir revisões, subversões e proposições criativas a serviço da luta antirracista e antissexista, atuando em suas raízes mais profundas nas instituições sociais e nas subjetividades.
Nesse percurso, Gonzalez foi produzindo operações teóricas fundamentais, das quais destacamos quatro de particular relevância para o campo psicanalítico, especialmente no Brasil: a torção radical do Édipo freudiano a partir da centralidade da mãe-preta na cultura brasileira; o desvelamento da amefricanidade na linguagem pretuguesa; a memória diaspórica como resistência à consciência colonial; e o horizonte ladino-amefricano como eixo da luta antirracista.
Conclusão: um farol de luz negra
Gonzalez, que nunca se reivindicou psicanalista, pode ser compreendida tanto como uma ponte quanto como um novo mirante sobre Freud, Lacan, Deleuze e Guattari. Nesse percurso ascendente, somos movidos por uma ética do campo que encara as teorias em sua provisoriedade, priorizando a escuta do sofrimento concreto de seu povo. O ponto de vista que Gonzalez nos propõe deflagra o constrangimento e a alienação que nos assombram, ao mesmo tempo em que lança um farol de luz negra sobre o horizonte da sociabilidade brasileira e do exercício da liberdade.
O encontro entre Lélia Gonzalez e Cláudio Ulpiano representa algo fundamental para nossa época: a disputa por uma revisão histórica dos marcos epistêmicos que orientam nossa compreensão sobre o sujeito, o pensamento e a liberdade. Essa revisão não é apenas teórica, mas está intrinsecamente vinculada às possibilidades concretas de enfrentamento do racismo contemporâneo e à produção de novos mundos, onde a ideia de “raça” não sirva a hierarquizações e opressões.
IMAGENS DA NOITE: ensaios sobre raça e racialização — Victor Galdino
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Raoni Machado Jardim é psicanalista. Graduado em Ciências Sociais (UnB). Mestre em Sociologia da Cultura (IDAES/UNSAM. Bolsa OEA). Doutor pelo Departamento de Estudos Latinoamericanos (ELA/UnB. Bolsa CNPq). Especialista em Teoria Psicanalítica (Uniceub). Pós-doutorando em psicologia clínica (USP. Bolsa Fapesp). Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/USP). Membro da Rede de Pesquisadores do Encontro de Saberes. Coordenador do Grupo de Pesquisa Rede Lélia Gonzalez de Pesquisa e Formação (CNPq). Membro dos coletivos Psicanálise na Rua (BsB) e Grupo Terapêutico do JAMAC (SP).
Anderson Santos é psicanalista, graduado em Psicologia, especialista em “Saúde Mental, Imigração e Interculturalidade” pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e mestre em Ciências da Saúde (UNIFESP). Membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt e do grupo de estudos em Relações Raciais, Psicanálise, Gênero (RRPG) ligado ao PSOPOL/USP. Foi organizador dos livros: “Uma política da loucura e outros textos – F. Tosquelles” (2024, ed. Ubu e sobinfluencia edições), Psicanálise e Esquizoanálise: diferença e composição (2022, n-1 edições) e Guattari/Kogawa. Rádio livre. Autonomia. Japão (2020, sobinfluencia edições).
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