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 CONTEÚDO 

FAMÍLIA - Flá Lucchesi


Legenda: The Lovers, obra de Leonara Carrington. 1987.



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As diversas modulações de quarentena encerraram as pessoas em seus lares –evidentemente, as que possuem ou podem pagar por um imóvel e que não estão encarceradas em prisões, campos, clínicas... A maioria acabou restrita ao convívio com parentes e companheires/namorades/esposes[i]. Muita gente voltou para a casa dos pais, muites velhes foram parar na casa des filhes, várias pessoas não puderam sair desse convívio familiar e tantos casais foram – voluntária ou involuntariamente – reduzidos ao relacionamento monogâmico e à rotina matrimonial. É possível que muitas pessoas tenham se deparado com uma situação de convivência forçada, uma vez escancarados os incômodos e a constatação de que não há tesão em estar junto com quem se vive ou onde se vive. O que isto produziu e produzirá de rupturas para além de divórcios e separações? Com as “reaberturas”, quantes reacomodam-se? Até serem confinades novamente?

Muito tem sido dito, noticiado e postado enquanto reforço da família. E durante estes meses, além da continuidade das agendas e negócios neoliberais envolvendo minorias, tudo o que se falou sobre gênero esteve encerrado na família.

Na biologia, os esforços para classificar os inúmeros seres de acordo com critérios de semelhança são estabelecidos por meio de táxons. Dentre eles, família e gênero. Família afunila para gênero segundo uma maior semelhança entre os seres.

A maior parte das palavras que definem táxons biológicos são repetidas também no âmbito social. Dentre elas, família e gênero. Socialmente, se considerarmos o modelo de família “tradicional”, parece que olhamos para a figura que se desenha entre gênero e família na biologia de forma invertida: não é a família que comprime para o gênero, mas o gênero que abre para a família.

O uso social da palavra gênero tem procedência na biologia e no saber médico. A categoria foi criada pelo psicólogo infantil John Money em meados do século passado, a partir de pesquisas com pessoas intersexo e da constatação de que, mesmo biologicamente, não era possível restringir as diferenças sexuais ao dimorfismo. Gênero passou a ser usado também para definir “papéis sociais” e aceitava-se a ocorrência de transtornos de “identidade psicológica” a este respeito. Esta procedência foi ignorada largamente pelos movimentos feministas que repetiram esta palavra como aporte para críticas da opressão das mulheres, até que nos anos 1990, em meio aos embates e às pesquisas do que ficou conhecido como teoria queer, esta categoria começou a ser estancada.[ii] Ainda assim, hoje em dia, o uso da categoria gênero segue amplamente reproduzido em discursos de vertentes feministas e lgbt+[iii], ainda que desconstruído, fluidificado, multiplicado.

A divisão entre o sexo biológico e o gênero social também se mantem. Organizações internacionais e entidades governamentais procuram relatar os efeitos “desiguais” do novo coronavírus para os diferentes gêneros (reduzidos ao velho binarismo). Conclui-se que, apesar de morrerem menos, as biomulheres[iv] sofrem mais com os efeitos deste vírus. Sem muito detalhamento, constata-se que as pessoas designadas com o sexo feminino ao nascerem são biologicamente menos propensas a morrer em decorrência da Covid-19. Contudo, são mais expostas ao vírus por atuarem como profissionais da saúde, em hospitais e como cuidadoras, e por reproduzirem essa função no seio familiar, cuidando do lar e dos parentes adoecidos. Porém, embora mais expostas, as mulheres são consideradas mais cuidadosas, mais higiênicas e menos suscetíveis a “condutas de risco”. Mesmo que estas organizações mencionem profissões “de risco” exercidas por mulheres, trata-se sempre de algo vinculado às desigualdades econômicas. Quase nada se fala substancialmente sobre a prostituição, por exemplo.

Da janela do quarto, vejo as luzes vermelhas de um bordel. Nestes cinco meses, poucos foram os dias em que essas luzes não refletiram nas paredes de casa (o que não quer dizer que as atividades ali estivessem paralisadas). Imagino que esse não seja um caso à parte, deste bairro, da cidade de São Paulo ou mesmo do Brasil. Afinal, a prostituição é um serviço essencial para a manutenção da família monogâmica burguesa heteronormativa; “tradicional”.

Quase nada se fala também sobre as violências empreendidas cotidianamente contra crianças e jovens dentro dos lares de classes baixas, médias e altas (incluindo todas as variações de classificação entre elas). No início da disseminação planetária do vírus, a Unicef projetou o risco do aumento dessas violências. Esporádicas matérias jornalísticas, em um ou outro país, noticiaram o aumento de entradas de crianças muito machucadas em prontos-socorros. Só.

No entanto, fala-se muito sobre como ocupar as crianças, como distraí-las, sempre em segurança e de modo que não atrapalhem o home office e as demais atividades remotas, de aulas ao entretenimento. Agora, fala-se sobre onde deixa-las quando es responsáveis retornam ao trabalho presencial. Parece que a questão é: “o que fazer com elas?”. E podemos imaginar as respostas daqueles que se consideram donos e superiores a elas. A ameaça da qual se fala publicamente é sempre externa. A “pedofilia online”, os “cibercrimes”, a exposição a conteúdos inadequados, os perfis que buscam atrair crianças e jovens para desafios que envolvem automutilação. Reitera-se que no lar da família “tradicional”, ou modulada e assimilada a ela, nada de mal ocorre às crianças e aos jovens.

De outro lado, muito se noticiou o crescimento vertiginoso da violência de biohomens sobre biomulheres. Desde a China, notificava-se o aumento dos casos de “violência doméstica”, muitas vezes por denúncias online, através de hashtags em redes sociais. Estimativas calculadas pela ONU no fim de abril, projetaram um aumento de 15 milhões de casos a cada três meses de quarentena, considerando todos os 193 Estados-membro. Não seria exagero ou generalização dizer que, em todos os países que aderiram às modulações de quarentena, um número crescente e imensurável de mulheres foram alvos de violências de machos em seus lares. No Brasil, contabilizou-se um número ainda maior que o “normal” de biomulheres executadas por seus machos ou ex-machos. Assim como acentuaram-se as mortes de mulheres trans, muitas delas dando cabo à própria existência – e possivelmente outras tantas violências sobre corpos outros, também inferiorizados, que não viram notícia nem estatística.

As campanhas contra a “violência doméstica” em todo o planeta procuram promover a denúncia, os canais para tal finalidade e as chamadas políticas públicas, atreladas ao recrudescimento das penalizações. Os machos que espancam, violentam, torturam, acossam as mulheres com quem vivem ou se relacionam, o fazem por se considerarem superiores a elas. Muitas vezes, como forma de castigar ou corrigir uma conduta que julgam inadequada; por ciúme ou medo de perder sua posse; ou pelo uso da força bruta para calar e dar a autoritária palavra final. Assim como as crianças e jovens são castigades, violentades, torturades, espancades por adultos responsáveis que lhes querem corrigir, que lhes consideram inferiores, que não têm paciência para conversar com elis. Em geral, justifica-se a alegada superioridade por meio de “evidências” fisiológicas, biológicas; “naturais”. E nas sociedades fundadas na propriedade – pública e privada –, como a nossa, os seres considerados inferiores são tratados também como propriedades.


Assistimos ao desespero crescente das autoridades de todos os países para assegurarem o regime da propriedade, diante da tão alardeada “crise” e das eminentes revoltas. Isso passa pela defesa de estatuas de colonizadores, escravocratas e genocidas; passa pela criminalização como “terrorista” para pessoas que atacam propriedades de capitalistas e do Estado (sem ferir ou matar ninguém); passa pelo reforço da consagração da família “tradicional” ou assimilada a ela, pela manutenção das relações amorosas com base na propriedade de 1 sobre outre e sobre es filhes.

Falando em Estado, eis outro aspecto de gênero bastante comentado recentemente. Em meados de abril, um artigo publicado na revista Forbes – amplamente replicado em outras mídias e compartilhado nas redes – promoveu o “sucesso” de mulheres chefes de Estado na contenção da Covid-19. Elencou os exemplos das líderes da Alemanha, Islândia, Nova Zelândia, Dinamarca, Finlândia e de Taiwan, e as virtudes de seus governos: compromisso com a verdade, poder de decisão, uso de tecnologias e amor.

Os métodos usados pelos governos delas foram os mesmos de tantos outros: testagem massiva, quarentenas, uso de tecnologias para monitorar a população, punição para quem desobedecesse às medidas de governo. O que diferenciou foram as declarações públicas. “Geralmente, a empatia e o cuidado que todas essas líderes femininas comunicam parecem vir de um universo alternativo ao que estamos acostumados. É como se seus braços estivessem saindo dos pronunciamentos para abraçá-lo de forma amorosa e sincera. Quem diria que os líderes poderiam passar esse sentimento? Agora sabemos”.

O exercício do governo, seja ele do Estado ou do lar, pode ser operado por formas classificadas como masculinas ou femininas e pela combinação de ambas. Já nos alertara Virginie Despentes, “a maternidade tornou-se o aspecto mais glorioso da condição feminina. (...) Mamãe sabe o que é bom para as crianças –, ela possui esse poder assombroso de maneira intrínseca. Réplica doméstica daquilo que se organiza coletivamente: o Estado sempre vigilante sabe melhor do que nós o que devemos comer, beber, fumar, ingerir, o que podemos ver, ler, entender, como devemos transitar, gastar nosso dinheiro, nos distrair.”[v] O Estado pode projetar-se como pai todo-poderoso e como mãe todo-poderosa.

Um modo de vida que se faz na autoridade, que delimita diferenças enquanto hierarquias de supostas superioridades-inferioridades, reproduz o Estado e o sustenta. Reproduz sua lógica no cuidado como governo do outro, nas punições, nos castigos, na defesa da propriedade.

No final do século XIX, ao sul deste território demarcado como Brasil, alguns imigrantes vivenciaram uma experiência anarquista que envolveu a luta cotidiana contra a família. “A autoridade, danosa quando constituída pelo Estado, é ainda mais danosa na família, seja exercida pelo homem sobre a mulher, seja exercida pelos genitores sobre a prole. Assim, na família nós queremos banida qualquer autoridade. Como não devemos ser proprietários na vida social ampla, assim não devemos ser dentro da muralha doméstica”.[vi] A proposta de Giovanni Rossi, que escreveu a afirmação acima, foi um convite para lidar com a terra e viver de forma libertária também nas relações amorosas, afetivas e de parentesco. Ele propôs o amor livre na Colônia Cecília. Nenhum homem teria posse de uma mulher ou sua exclusividade, nem a posse das crianças nascidas na Colônia, que seriam criadas por todes, sem uma paternidade reconhecida.

Muitos dizem que o “idealizado” por Rossi não deu certo, que a curta existência da Colônia Cecília e, principalmente, as dificuldades em viver o amor livre “fracassaram”. Aprendi com Jack Halberstam que há potência no fracasso, elemento comum às histórias menores, des queers e des anarquistas.[vii] Na época em que Rossi e a Colônia viveram, era impossível que se questionasse o gênero – categoria inexistente até então –, ainda que lutassem pela emancipação feminina (mas deixassem um tanto de moral conservada...). Hoje, são infinitas as possibilidades não só de questionamento, mas de ruptura com o gênero e também com a sexualidade. Romper com a família e com um modo único de se relacionar amorosa e afetivamente, isso anarquistas fizeram desde o século XIX, experimentando, muitas vezes sem “sucesso”. Romper com o gênero e a sexualidade é uma batalha travada por pessoas incógnitas desde as últimas décadas do século XX, também muitas vezes “fracassando”.

Sucesso é palavra do capitalismo. O reforço da família e da ordem, o desespero em “salvar o mundo”, voltar ao “normal” ou iniciar o “novo normal”, alertam que é preciso fracassar o gênero e a família experimentando no presente formas outras e inclassificáveis de viver juntes. Formas estas que escapem às normalizações e assimilações. Romper com as identidades, começando pela primeira que nos é atribuída pela autoridade médica logo ao nascermos, para depois sermos registrades como filiades aos nossos pais e como cidadãis do país; romper com a propriedade, a começar com a de 1 ser sobre outre.




Flá Lucchesi



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Flá Lucchesi é integrante do Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol). Realiza a pesquisa de doutorado queer: práticas e embates libertários.




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Notas da Edição:


[i] Optei pelo uso das letras e/i para não flexionar o gênero de forma totalizante no masculino. O uso da letra x me parece mais interessante por não operar por uma substituição, deixando as possibilidades abertas. Contudo, considero que e/i facilitam a leitura para mais pessoas. Sempre bom lembrar que a língua não é neutra, nem nunca será. Assim como o gênero. A neutralidade só existe na química. [ii] Ver: Paul B. Preciado Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018. [iii] Atualizar a ordem das letras na sigla apenas reitera disputas identitárias, dando continuidade a inócua “olímpiada des oprimides”. O resultado é a assimilação na ordem, na política. Aqui interessam transformações radicais, rupturas e não reformas inclusivas bem adequadas à racionalidade neoliberal. [iv] Na primeira edição do Testo Junkie, Preciado utilizou os termos biomujer e biohombre. Anos depois, na revisão para a publicação em português, ele substituiu estas palavras por cisgênero. Recupero aqui biomulher e biohomem, pois penso que a rígida categoria cis funciona como uma identidade compulsória, na maioria das vezes imputada externamente. O que também faz funcionar a profusão de identidades de gênero que, me parece, levam ao reforço desta categoria e de problemas aqui colocados. [v] Virginie Despentes. Teoria King Kong. São Paulo, n-1 edições, 2016, p.20. [vi] Giovanni Rossi. Un Comune Socialista. Livorno: Favillini, 1891 apud Candido de Mello Neto O anarquismo experimental de Giovanni Rossi: de poggio al mare à colônia cecília. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2017, p.36. [vii] Ver: Jack Halberstam. A arte queer do fracasso. Recife: Cepe, 2020.



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A palavra é vírus

Simultânea e paralelamente à pandemia do novo coronavírus, muitas palavras também ganham a insistência das repetições. A cada segunda-feira, um novo ensaio pensando com as palavras. Quer saber mais sobre a série? clica aqui

Editores: Wander Wilson e André Arias. E-mails de contato: wanderwi@gmail.com / andre.fogli@gmail.com



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