O presente texto foi escrito para o evento "Não ser governado", de lançamento do livro Política Selvagem, de Jean Tible, realizado no dia 02 de março de 2023 na Livraria Filha Seca, na cidade do Rio de Janeiro, organizado pelas editoras GLAC edições e n-1 edições e pela livraria.
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Somos todos selvagens – As palavras deixadas pelos desertores franceses em 1680 encontra ecos na palavra de ordem das ruas em 2013 – Somos todos vândalos – mas também apontam para uma outra experiência com o mundo, que não é de dominação, nem de representação, mas de interdependência criativa entre humano e não humano; sujeito e objeto; cultura e natureza. Através da política selvagem, nas palavras de Jean Tible, encontramos nas revoltas uma relação de constituição mútua, interna, não dialética, pelo menos não no sentido que esta aspira sínteses totalizantes, mas que é afirmativa da multiplicidade, direta, contracolonial. Trata-se aqui, portanto, tal como entendo, não apenas de uma política, mas talvez antes de tudo de uma ontologia selvagem, pois envolve uma compreensão do real como dinâmico e fluído. Da vida-luta como uma festa-guerra, como um complexo emaranhado de múltiplas determinações, reciprocidades, associações e simbioses. Isso fica ainda mais evidente quando o autor fala em conflitos entre mundos, entre formas de vida. Guerras ontológicas que opõe saberes ancestrais e cuidado àmonocultura colonial e capitalista.
Na sua escrita transversal, o livro permite traçar estes passos da política para a ontologia, permitindo também pensar o presente, seus acontecimentos e insurreições do ponto de vista da falência da representação, isto é, da ruptura profunda com os dualismos entre teoria e prática; mente e corpo; público e privado; conhecimento e vida; forma e conteúdo; meios e fins. Assim, somos capazes de passar em poucas linhas de Camus a Krenak; de Espinosa a Marx; dos povos das florestas às ocupações das praças, sem esquecer o zapatismo, Mariatégui, Nise da Silveira, Fanon, Deleuze e Foucault, além dos marxistas heterodoxos e, claro, nós, os anarquistas. E digo isso aqui apenas para mencionar algumas referências. Pois, nesta escrita livre, recheada por palavras de ordem, são as memórias concretas das lutas que são cristalizadas. E assim atravessamos séculos, sempre com o pé no presente, seguindo a forma-comuna por uma extensa história de autodeterminações, autogestões e autodefesas, que apontam para uma outra maneira de viver para além da forma-estado, experiências que nos permitem conectar os soviets russos e a comuna deparis às ocupações secundaristas, aos navios piratas, aos povos originários e aos quilombos em resistências. Vemos assim que esta outra forma de viver, por assim dizer imanente, tomada por tantas e tantos como impossível, sempreesteve aí, ainda que sucessivamente massacrada, resistindo, prefigurando, recusando a priori toda forma-estado, toda política que se separa como transcendência abstrata da vida concreta para tentar controlá-la e governá-la. E não esteve aqui como um acidente, como uma falha apenas, mas como a matéria que anima a vida, como aquilo que há de mais fundamental, pois foi para reprimi-la que talvez tenha se organizado todo aparato colonial moderno daquilo que costumamos chamar de estado.
E é muito importante retomar estas narrativas sobre levantes e revoltas para entender nosso tempo, mostrando que o que move a história é a ação direta e não o contrato, bem como o vínculo das insurreições atuais com os movimentos de 68, e outras tantas comunas, nas quais nossas bandeiras negras figuraram como linhas de frente. E isso sobretudo quando fakes do contrassistêmico são fabricados pelo sistema tomando vida própria em nossa variante do fascismo alt-right. Ou quando tentam tomar nossas potências como nossos próprios carrascos, voltando-as contra nós mesmos, culpabilizando as revoltas pela ascensão conservadora. Assim, é importante refazer esses vínculos, para lembrar como é longa nossa história, para criar nossos sentidos, refazer nossa própria mitologia. As heranças das lutas massacradas, hoje como ontem, vivas em nossos corações, seguem fomentando transformações profundas, novos levantes, territórios libertos. Mas quais são elementos dessa política selvagem? Primeiro, algo que não tem nenhuma relação com a noçãomoderna de política, mas que se insere justamente no que é tratado como resto, como falha para tal política da representação, uma política do irrepresentável. Uma antipolítica? Uma prática concreta não centrada no estado, nem na representação, mas na luta e nos movimentos, uma política dos de baixo. E talvez devêssemos mesmo alterar nossas metáforas geográficas e falar cada vez menos em esquerda e direita, e mais em os de baixo e os de cima. Aquicumpre notar que a noção de espaço público, da polis, surge já separando um âmbito que seria o do exercício legítimo da vida cidadã do que seria o âmbito privado, relegado às mulheres, ao cuidado, à vida que será tratada como menor, e que é portanto também tomada como invisível ou eliminável pela então pensada como sendo a única e real política, aquela da forma-estado, da res pública, da forma homem-branco-europeu. Cumpre então a uma política feminista invadir e ocupar o espaço público pelo privado. Pois se reunir é tão importante quanto cozinhar, plantar e se cuidar. Pois a revolução precisa ser entendida também uma transformação das subjetividades, um torna-se outro de si mesmo, um processo terapêutico de cura do vírus do capital. Uma cura que é uma resistência da vida contra o capital. E trata-se também ao mesmo tempo, da invasão da forma pelo conteúdo; os meios pelos fins; da teoria pela prática; do abstrato pelo concreto. Profanar e prefigurar uma vida que valha a pena ser vivida como performativos políticos, onde começamos a viver diretamente aquilo pelo que lutamos. Uma política da ação direta, portanto. Não há representação sem restos. Uma política das multidões é uma política do grito dos excluídos. E talvez nos caiba menos brigar para caber nessa forma excludente da subjetividade colonial do que denunciá-la como parte do problema e esvaziá-la, destituí-la de seus poderes transcendentes. E talvez aqui seja possível mesmo listar o que nos salta aos olhos nestas experiências contra o primado da representação: autogestão generalizada; mandatos revogáveis; locais de apoio mútuo; grupos de afinidade; não separação entre meios e fins almejados; cuidado do cotidiano; recusa às hierarquias fixas; abolição do trabalho; assembleias como instâncias decisórias; ação direta; democracia direta; sem mediação; minoria ativa; supressão da separação entre intelectuais e trabalhadores manuais. Elementos que constituem uma minoria heterodoxa dentro do marxismo, e que são o coração mesmo do anarquismo por completo.
O que também se segue das análises da política selvagem é que a política institucional recusa e criminaliza a revolta justamente porque coloca suas forças em disputar a representação. E com isso aprendemos ainda sobre os elementos envolvidos nas reações que acompanham a longa história da comuna. As respostas fascistizantes que se estabelecem como contrarrevolucionárias, a manutenção do poder que procura voltar nossa força contra nós mesmos envolvendo sempre o fortalecimento do estado policial. E assim podemos ver também que para combater a forma-comuna desta então denominada política selvagem sempre haverá um social-democrata autorizando o massacre por suas alianças com a elite, nem que isso signifique abrir as portas para o fascismo que habita em todo estado liberal.Mas para nós o público não se confunde com o comum, o impede de surgir, o parasita, e assim também vemos em que sentido todo estado é já colonial e heteropatriarcal, mesmo que seus atores não o julguem, e que falar em democracia, esta palavra já tão gasta pela pluralidade de sentidos, só nos pode ser ainda aproveitável quando é aomesmo tempo não-representativa e equivalente à autogestão e à autodeterminação.
Camila Jourdan
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POLÍTICA SELVAGEM – Jean Tible
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Um belíssimo "arrastão" da rebelião. Na contramão da sisudez acadêmica e da torre de marfim teórica, com leveza e graça incomuns Jean faz o leitor passear pelos meandros mais concretos e palpáveis dos movimentos de todo tipo, feministas, negros, lgbt, indígenas, quilombolas, zadistas, bruxistas, funguistas, tudo salpicado de Zé Celso, Baldwin, subcomandante Marcos, Miariátegui.
COMBO 🎂 MARX 💀 – Jean Tible
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Em14 de março de 2023 fez 140 anos que MARX deixou de existir. Com isso, as editoras GLAC edições, Autonomia Literária e n-1 edições, propulsoras do pensamento inventivo e experimental de Jean Tible — importante ensaísta das lutas, que defende e empreende debate sobre a aproximação das ideias, análises e propostas de Marx ao povos rebeldes, pobres subalternos e dissidentes ao entendimento e à pratica selvagem —, decidiram se unir para soltar um combo com todos os trabalhos do autor já publicados.
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Camila Jourdan
É filósofa, pesquisadora e militante anarquista brasileira. Desde de 2010 é professora do departamento do filosofia da UERJ, e já foi coordenadora da pós-graduação do mesmo curso. Fez sua graduação em filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, formando-se em 2002, Em 2005 terminou seu mestrado na PUC-Rio, com período sanduíche na Universidade Paris I, Sorbonne, na mesma PUC concluiu seu doutorado em filosofia em 2009. Em 2009-2010 foi bolsista CAPES-PRODOC na Universidade Federal do Paraná. Seus trabalhos estão situados na interface entre filosofia da linguagem e filosofia política, tratando de Wittgenstein, Foucault, materialismo linguístico, construtivismo semântico e a falência do paradigma representacional na contemporaneidade.
excelente texto de Camila Jourdan!