Legenda: Capa da publicação do Segundo Manifiesto: La estética de la Solidaridad, 1995, La Plata
Escombros é um coletivo argentino de "arte callejero" nascido em 1988, na cidade de La Plata. É um grupo formado por artistas e pesquisadores de diferentes linguagens, tendo produzido trabalhos em diversos suportes como fotografia, performance, gravura, instalações, panfletos, grafite (entre outros), sempre com o intuito de um fazer voltado para o espaço público, na tentativa de reinstaurar vínculos sociais e de convivialidade. A preocupação do grupo está em fazer refletir a realidade sócio-cultural argentina, principalmente em um período pós ditadura militar e grave recessão econômica. Escreveram diversos manifestos propondo uma estética que lidasse com os detritos desses processos, atuando por meio "do que ficou" para pensar um modo de lançar-se a uma perspectiva de futuro contrária a imposta por um Poder vigente. A seguir, um dos manifestos escritos pelo grupo.
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Sobre a Arte Solidária
- A estética da solidariedade expressa a ética da solidariedade: o artista solidário cria para o vulnerável, para o indefeso, para o não respeitado; para o que caminha descalço, treme de frio e come lixo; para o que se veste de trapos, vive na rua e morre em um terreno baldio. A estética da solidariedade é o espelho onde o Poder contempla sua própria decomposição; - Em um mundo regido pela desigualdade, os rios são compostos de lágrimas; as montanhas de corrupção; os ventos de gritos; os mares de indiferença. Esse é o mundo que expressa Escombros; - A quem carece de tudo, os quadros do artista solidário servem também para cobrir as janelas sem vidro; as esculturas de madeira para fazer fogo e se aquecer; as de bronze e mármore para vender por quilo e comprar comida; os tapetes para serem usados como cobertores; as gravuras para serem colocadas por baixo da roupa e proteger-se do vento; - A arte solidária é a nova educação pública. A educação é a mudança a longo prazo. A única possível;
- Tensionar o arco até que este se rompa ou que se quebre o braço na tentativa. Criar é um ato máximo de tensão; - Toda obra de arte solidária é um ato de consciência; - Toda obra de arte solidária é uma batalha por um mundo melhor; - Como o errante, o sem-teto, a criança de rua e o imigrante indocumentado, Escombros recorre a cidade buscando a matéria prima para suas obras: o lixo, detritos da sociedade opulenta e alimento dos excluídos; - A luz, como nas pinturas impressionistas, é essencial em nossas obras. Mas, diferente deles, não a usamos para iluminar paisagens, e sim as cavernas interiores do homem: essas onde habitam o horror à vida e o amor à morte; - O mundo é um signo de interrogação que gira em torno do vazio. O artista solidário talha a sua obra em material que destrói todo os buris: a incerteza; - Se já não há canteiro para extrair terra, nem terra para fazer tijolo, nem tijolo para levantar casa, o artista solidário construirá ainda assim. Seus sonhos serão o plano, seus ossos o cimento e suas palavras o muro;
Sobre o artista solidário
Decálogo do artista solidário: - Buscar a verdade; - Defender a liberdade; - Criar transparência; - Resistir e insistir; - Não temer o medo; - Recuperar o abandonado; - Proteger o indefeso; - Dar tudo por nada; - Explorar, descobrir e fundar; - Fazer da solidariedade o sentido da vida; - Para o artista solidário ensinar a ler e escrever, pintar uma escola, limpar um terreno baldio, purificar um poço de água, replantar um bosque desmatado, também são obras de arte; - O artista solidário é uma testemunha de acusação. É o dedo acusador que denuncia a sociedade e o maior de seus delitos: a indiferença;
- O artista solidário não contempla o mundo: o constrói; - O artista solidário deve dar um projeto de vida a quem o Poder despojou de seu único bem: o futuro; - Para o artista solidário a busca da verdade começa por questionar o que o Poder decidiu que era inquestionável; por defender a liberdade, por atacar o que o Poder decidiu que é inatacável;
- No mundo das rodovias o caminho do artista solidário tem a espessura de uma corda. Sobre essa corda bamba ele caminha, sabendo que nenhum equilíbrio é possível;
- Em uma sociedade em crise permanente, o artista corre o risco de dizer: “não é o momento de criar”. Sempre é o momento de criar. O artista solidário constrói no epicentro do terremoto, sabendo que o edifício ruíra pela manhã e terá que ser reconstruído; - O artista solidário leva luz onde reina a escuridão; água onde impera o deserto; esperança onde ela foi perdida; razão onde se impôs o desvario. Fala com os surdos e escuta os mudos para que saibam que não o são; diz aos que estão mortos por dentro que as pedras têm vida;
- Não à ética da competência; não ao criar para vender; não ao vender para viver. Sim à ética da colaboração; sim ao criar para expressar a condição humana; sim ao viver para criar; - O artista semeia sementes de solidariedade: um dia, mesmo que não esteja mais aqui para vê-las, a árvore crescerá e dará frutos; - Há um direito que o artista solidário não pode exercer: dizer, frente a sua obra, "não sei do que se trata";
- Para o artista solidário o individualismo é uma prisão de segurança máxima. Viver nela é estar morto apesar de seguir respirando;
- O artista individualista pari cadáveres; - No mundo que vem, nada sobreviverá apenas por si mesmo. O indivíduo será o grupo; - Escombros opõe ao “salve-se quem puder" o “todos ou ninguém”;
Sobre o Poder
- O Poder decidiu que o acaso fosse a nossa forma de vida. A nova ordem de que supostamente somos parte cerceia o indivíduo de suas próprias forças. O trabalhador, o aposentado, o professor, o pesquisador, a criança de rua, o indígena com cólera, o doente psiquiátrico, o desempregado por conta do "ajuste", estão à deriva. O Poder não lhes deixou outra opção a não ser aceitar a filosofia do "salve-se quem puder". São náufragos porque não vão aonde querem ir, mas sim para onde os arrasta a corrente. A esses náufragos, cujo horizonte é o desamparo e a incerteza, enviamos a nossa mensagem;
- A utopia do progresso foi substituída pelo empobrecimento sem fim. O progresso foi a máscara do Poder; a pobreza seu rosto;
- Estabilidade e solidez são sinônimos de ilusão. A ilusão é filha da resignação. O resignado, o saiba ou não, é um submetido. O submissão é o fim último do Poder; - O Poder cria uma sucessão de imagens enganosas que obstruem a consciência. É um labirinto de espelhos que o artista solidário rompe para ver o que há por trás. Quem percebe que está em uma emboscada começa a pensar como sair. E a como ser livre; - A confusão é nosso certificado de disfunção. Sobreviveremos na medida em que saibamos quem somos e o que queremos: devemos ser lúcidos até o intolerável; - Não à confusão, não à marginalidade, não à loucura. O confuso, o marginal e o louco estão condenados a ser dominados; - Para o excluído, o pecado original não é ter comido a maçã: é ter fome e não poder comê-la; - Fazer da desobediência uma prática; - Há uma Besta. Não é a do Apocalipse, nem a dos poetas surrealistas, nem a da crônica policial. Essa Besta é todo o indivíduo, grupo ou não cujo objetivo é submeter aos demais; - O uso que o Poder faz do dinheiro é um ato de terrorismo. O abuso é a natureza do Poder;
- O Poder é sempre o carrasco; a sociedade é sempre a vítima. O trágico dessa relação é que, às vezes, a vítima não o sabe; - A indiferença é a alma letal do Poder. A que converte alguém um desocupado, condenando a morrer e seguir vivendo; - A razão poder ser o disfarce da loucura do Poder. O melhor exemplo: "A razão do Estado"; - Escombros não faz arte política; fixa as pautas de uma política cultural. Seu objetivo: construir uma cultura não-autoritária. - Aquele que esquece corre o risco de ser filho do autoritarismo. O que lembra tem a possibilidade de ser pai da democracia. Só a memória evitará que o Poder legitime o arbitrário. Só a memória pode evitar que o Poder alcance seu objetivo: construir uma cultura de desaparecimento;
Sobre a Corrupção
- A corrupção é um mar que não admite margens. Estende-se de modo incontido, afogando tudo ao seu redor. Não se pode margeá-lo e não é possível atravessá-lo sem naufragar. Ninguém que o navegue, mesmo que seja por um instante, volta a si mesmo; - A corrupção é a ferida pela qual a sociedade sangra. Hemorragia moral que arrasa valores e ideais como a solidariedade com o vulnerável, a justa distribuição da riqueza e a decisão de que todos os indivíduos tenham as mesmas oportunidades; - Os governantes latinoamericanos, corrompidos pela ilusão do Primeiro Mundo, estabelecem com ele relações injustas. Em nome do poder e da riqueza condenam seus povos à impotência e à pobreza. Todo projeto político-econômico que não possui o respaldo de um código moral está destinado, de antemão, à corrupção e ao fracasso; - A corrupção é a máxima expressão da cultura do desprezo;
- As sociedades corruptas são suicidas.
Sobre a Ecologia
- O homem deve ser o pastor do mundo: sua missão não é submetê-lo, mas cuidálo. Como o pastor e seu rebanho, são inseparáveis. O que acontece com um afeta o outro: o desmatamento indiscriminado nos mutila; cada derramamento de petróleo nos envenena; tudo o que contamina a atmosfera nos asfixia. Se nossa herança é o deserto, teremos fracassado como espécie e traído nosso destino. O pastor terá se convertido em lobo: um lobo que terminará devorando a si mesmo. - Nas selvas devastadas, nos rios contaminados, nos desertos criados pelo homem, com as espécies em vias de extinção, Escombros povoa o nada e decreta a morte da morte. - Desmatar um bosque ou derrubar irracionalmente as árvores de uma cidade significa: atacar o indefeso; submeter o mais vulnerável; exercer a impunidade; negar a prolongação da vida; arrancar o futuro pela raiz; somar-se a um projeto de morte; - Quando a natureza deixar de ser espoliada, a sociedade também deixará de ser. A cultura do desprezo que hoje exerce o Poder será substituída pela cultura da solidariedade; - Humano é todo aquele que sente; - Um animal é uma pessoa com outra forma; - Todas as formas de vida possuem direitos; - O desmatamento é um crime em série; - O desperdício é um crime contra a humanidade; - Fazer da Terra a Arca de Noé.
Sobre o Futuro
- Esperar o inesperado; - Somos parte de uma sociedade que contempla inerte a destruição de suas tradições, valores e projetos. Uma sociedade cujo destino evidente é o de converter-se em terra arrasada. Sobre essa tábula rasa escreveremos nosso futuro; - A nostalgia é decadência: não devemos lamentar o que foi perdido. Sobre o cadáver do passado, Escombros no constrói um mausoléu, mas uma nova forma de vida; - O artista solidário é o sentinela do futuro, essa forma absoluta da intempérie; - O futuro exigirá a coragem de saltar no vazio e a vontade de sobreviver à queda; - O que se atreve a sonhar acordado será livre, mesmo vivendo encarcerado; - Já não existirá o olho do mestre, nem a mão do mestre, nem o caminho do mestre. O artista solidário cego, manco e aleijado, criará com seus restos e com os restos do mundo que o rodeia; - Chegamos ao futuro sem termos nada o que perder. Essa debilidade é a nossa força; - Tomaremos o futuro de assalto.
Legenda: Grafite em terreno baldio, primeiro trabalho produzido pelo grupo, 1988; a imagem foi transformada em cartão postal e enviada por correios. Imagem: Libraría El Astillero
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Tradução: Paloma Durante
Grupo Escombros: : Luis Pazos, Héctor Puppo, José Altuna, Horacio D'Alessandro e David Edward. Argentina, Buenos Aires/ La Plata, 1988
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Notas da tradução:
- Texto Original: http://www.geifco.org/actionart/actionart02/secciones/01-manifestacion/artistas/restosDeLaAccion/escombros/02/a-escombros02.htm
- Há uma segunda tradução do manifesto para o português, presente no doutorado da artista Cláudia Paim, no qual ela pesquisa modos de fazer coletivos na produção de arte da América Latina contemporânea; divirjo dela em apenas alguns poucos termos. Agradeço ao Felipe Apezzatti pela indicação.
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Nota da edição:
- Para um aprofundamento ao debate sobre solidariedade ao nosso atual contexto pandêmico, a GLAC edições indica o livro Ofensivas – a potência do não retorno a normalidade, escrito em formato manifesto pelo trabalhador da saúde e cientista político Paulo Spina. No chamado de Paulo se constrói e propõe o conceito de "solidariedade transversal" como meio de transpassar os problemas causados com o isolamento e o avanço do capitalismo de vigilância.
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Quarentene-se
Ao longo da pandemia, a GLAC edições publicou diferentes textos-testemunhos de diversos autores, esta disposição se configurou em uma série, editada sempre às quarta-feiras por Paloma Durante. "Quarentene-se" é uma apropriação e referência à uma trilogia de artigos de Claudio Medeiros e Victor Galdino publicada no site do Outras Palavras. Contato: malopadurante@gmail.com
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