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 CONTEÚDO 

UM EDITOR INSURGENTE – Homenagem a Eric Hazan, pelo filósofo Jacques Rancière


No preâmbulo do texto a seguir, publicado originalmente no jornal francês Libération, se lê:

"O fundador da editora La Fabrique, falecido na quinta-feira 6 de junho [de 2024], era muito mais do que um editor de panfletos revolucionários, afirma o filósofo. Este homem indignado contra toda a opressão amava, mais do que os pregadores, aquelas e aqueles que procuram, inventam e criam".


A morte de Hazan ainda é sentida e sua vida, celebrada, no meio editorial e militante francês. No próximo domingo, 13 de outubro, haverá um evento de homenagem "Hazan por seus camaradas" na cidade objeto de seu estudo minucioso A invenção de Paris – no cartaz do evento colado no vidro de uma livraria parceira de La Fabrique, há uma citação de Hazan: "todos os nossos livros, sejam aqueles que falam da democracia, da imigração, da Palestina ou da insurreição vindoura, todos têm o mesmo fim: mostrar onde passa a verdadeira linha de frente."


Em 2021, a GLAC publicou o livro de Hazan A dinâmica da revolta, uma reflexão sobre diferentes levantes e motins populares nos últimos 220 anos, o que eles têm em comum nas vitórias e catástrofes, e sobre como vê-los como uma fonte viva de lições e exemplos, de modo que a formação de forças revolucionárias se reaproprie de nosso passado, como antídoto ao pessimismo e à inação.






Homenagem a Éric Hazan


Jacques Rancière

tradução de Lucas Parente




Há uma forma infinitamente redutora de homenagear Eric Hazan, limitando-nos a saudar o corajoso editor e defensor da extrema-esquerda, o apoio inflexível dos direitos dos palestinos e o homem que, à contra a corrente de seu tempo, acreditava na revolução a ponto de consagrar um livro às primeiras medidas a se tomar no dia seguinte. 


Ele foi, seguramente, tudo isso, mas antes é preciso recordar o essencial: numa época em que a palavra edição evoca impérios de homens de negócios que fazem dinheiro com tudo, incluindo aí as ideias mais nauseabundas, ele foi, antes de mais nada, um grande editor. Não se trata apenas de uma questão de competência. É ainda mais uma questão de personalidade. E Eric era uma personalidade excepcional: mente curiosa por tudo, cientista de formação e neurocirurgião em uma vida anterior, mas também grande conhecedor das artes e apaixonado por literatura; habitante das cidades, sensível ao que cada pedra das ruas traz de história viva; homem aberto e acolhedor, com um sorriso radiante e um aperto de mão eloquente, desejoso de comunicar suas paixões, como de dar a conhecer o que descobria e de convencer os outros, longe de toda pregação, do que considerava serem as exigências da simples justiça.


Desde os meus primeiros contatos com ele, na época em que começava La Fabrique, notei que não se tratava de um editor ordinário. Ele havia assistido a algumas sessões do meu seminário sobre estética e queria entender melhor o que eu fazia e para onde isso conduzia. Enviei-lhe então uma pequena entrevista que tinha dado a uma revista confidencial publicada por amigos. Alguns dias depois, ele me informou que tratava-se de um livro e que iria publicá-lo, o que fez com suficiente eficácia para que esta minúscula obra, pouco visível na mesa de uma livraria, desse a volta ao mundo. Aprendi então essa coisa surpreendente: um grande editor é alguém capaz de saber e de nos dizer que fizemos um livro quando sequer nós mesmos o sabemos.


Assim começou para mim uma longa colaboração, pontuada por títulos cuja lista por si só provaria que Eric Hazan era muito mais do que um editor de panfletos revolucionários. O que teria ele, então, a ver com livros que exploravam territórios aparentemente tão afastados de qualquer eficácia política imediata como a polêmica sobre a paisagem na Inglaterra do século XVIII, a dissolução dos fios tradicionais da narrativa romanesca em Flaubert, Conrad ou Virginia Woolf, o entrelaçamento dos tempos nos filmes de Dziga Vertov, John Ford ou Pedro Costa, ou a concepção do espectador implicada nesta ou naquela instalação de arte contemporânea? Que necessidade teria ele, aliás, de publicar uma edição completa de mais de mil páginas do Baudelaire de Walter Benjamin? E de ele mesmo voltar a mergulhar na Paris de Balzac? Não é apenas o fato de que ele se interessava por tudo e sua cultura humanista era muito mais vasta e profunda do que a de tantos clérigos que sorriem diante de compromissos militantes como o seu. É que o mundo pelo qual lutava era o da mais ampla e rica experiência, e que ele não separava o trabalho do conhecimento e as emoções da arte da paixão da justiça. Este homem indignado contra toda a opressão amava, mais do que os pregadores, aquelas e aqueles que procuram, inventam e criam.


Para ele, mudar o mundo não era um programa de futuro, mas um trabalho diário de ajustar a visão e encontrar as palavras justas. E ele sabia que a revolta é, ela própria, um modo de conhecimento. Nos autores ou autoras mais extremistas cujos textos publicava, quer se tratasse de feminismo, de decolonialismo ou da sabotagem de oleodutos, não via somente um grito de cólera contra o reino da injustiça, mas também um trabalho de pesquisa, uma experiência singular do mundo em que vivemos, uma forma nova de o iluminar. Também por isso teve o cuidado de fazer com que os títulos mais provocadores aparecessem nas vitrines das livrarias com a roupagem colorida que os torna objetos preciosos.



Edições de La Fabrique, com seu inconfundível desenho gráfico de Jérôme Saint-Loubert Bié


Por isso que optou chamar sua empresa de La Fabrique? Para os conhecedores da história operária, o nome remete ao Écho de la fabrique, jornal dos operários da indústria da seda de Lyon em revolta após 1830. Sem dúvida lhe importava prolongar a lembrança das grandes jornadas operárias de 1848 e da Comuna. Mas a palavra “fábrica” associava a essa tradição de luta toda uma concepção do trabalho do editor: um afastamento radical das lógicas do lucro, combinado com uma gestão de rigor de impecável; um amor artesanal pelo trabalho feito com exatidão, que não negligenciava nenhum aspecto da produção de um livro; mas também uma ideia de oficina fraterna, em que umas e outros trariam o produto do trabalho que, ao se entrelaçar, se transformaria em outra coisa: uma riqueza comum de experiências, conhecimentos e olhares, um senso de capacidade partilhada para construir um mundo diferente daquele que nossos mestres e seus lacaios intelectuais nos apresentam como a única realidade incontornável.


Oferecer outras cartografias do que é visível, do que acontece e conta em nosso mundo, esta é a preocupação que o levou a reunir tantos autores e autoras com interesses, ideias e sensibilidades tão diferentes, todos igualmente respeitados por ele, sem jamais tentar unificá-los em uma linha comum. Porque esse grande editor era, antes de tudo, um homem livre que só podia respirar em uma atmosfera de liberdade. 



Eric Hazan (esquerda) e Jacques Rancière (direita) em evento de livro


Terá sido a escassez dessa atmosfera que, ao lado de sua doença, obscureceu seus últimos dias? Nunca as causas pelas quais lutou foram tão desdenhosamente ridicularizadas na teoria e tão alegremente pisoteadas na prática como em nossa época. Durante muito tempo, ele viu na própria ignomínia dos poderes que nos governam uma razão para ter esperança na revolução vindoura. Este mundo, pensava ele, está tão decrépito que o menor golpe recebido aqui ou ali só pode provocar seu desmoronamento. Essa é a lógica, talvez um pouco curta demais, dos bons artesãos e dos filhos das Luzes. Eles acreditam que a podridão faz desabar edifícios. Infelizmente, ela é, na verdade, a cola que mantém o mundo. E essa cola impõe um longo e paciente trabalho de limpeza àqueles que antes precisam criar um ar mais respirável e mais propício à preparação de outros amanhãs. Trata-se, em todo caso, de uma tarefa para a qual sua inabalável resistência a toda baixeza servirá por muito tempo de exemplo.

 



A DINÂMICA DA REVOLTA – Eric Hazan


Um percurso minuscioso pelas maiores revolucões ocidentais e orientais na busca pelas insurreições radicais levadas a cabo pelas comunidades subalternizadas, pobres e minoritárias, as quais o autor constata terem sido constantemente degoladas e apagadas pelos quadros poderosos da esquerda institucional.


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 *



Eric Hazan nasceu em Paris,  em julho de 1936, verão em que se desenrolava a Revolução Espanhola. Filho de mãe palestina de origem judia romena e de pai judeu egípcio, formou-se em medicina e, ainda cedo, engajou-se no Partido Comunista Francês (PCF), juntando-se à Frente de Libertação Nacional (FLN) durante a Guerra da Argélia. Especializou-se em cirurgia cardiovascular nos anos 70 e viajou para o Líbano em plena guerra, servindo como médico ao lado do exércitos palestino. De volta à França, dirigiu nos anos 80 a editora Hazan, sucedendo seu pai, Fernand Hazan. Editora voltada para livros de história e teoria da arte, Hazan publicava densos estudos de autores como Erwin Panofsky, Aloïs Riegl e, mais atualmente, Daniel Arasse. Em 1994, quatro anos após a morte de seu pai, Eric vendeu a editora Hazan ao grupo Hachette. Em 1998 fundou a editora La Fabrique, a qual é o editor até hoje.Aos 62 anos, Hazan passou a escrever. Ao publicar os cerca de 18 livros de sua autoria, tornou-se uma voz ativa e ouvida frente às crises e revoltas na Europa, no Magrebe e no Oriente Médio. Dentre seus livros, cabe mencionar alguns dos que foram publicados por sua própria editora: Uma história da Revolução Francesa, obra assumidamente robespierrista, que trata da revolução por meio de fragmentos e detalhes, evitando grandes sínteses; Paris sob tensão, que revela o surgimento de uma quase-revolução durante a queda de Napoleão, emanada de um movimento de resistência que logo se viu traído pelo entreguismo da burguesia nacional francesa; Crônica da guerra civil, diário que durante um ano relata os inúmeros acontecimentos bélicos mundiais e sua midiatização no início dos anos 2000. Hazan fez-se, portanto, historiador, cronista e cartógrafo de conflitos e tensões globais, muitos ainda pouco conhecidos pelo Ocidente. Mas, sobretudo, trata-se de um autor singular, que busca clarear detalhes cotidianos da experiência de anônimos que se dedicam à destruição definitiva do Estado.



Jacques Rancière nasceu em 1940 em Argel. Ele entrou na renomada École Normale Supérieure em 1960 e seguiu o seminário de Louis Althusser nos anos seguintes. Em 1965, ele participou de um seminário que se tornaria imensamente influente nas humanidades, quando foi publicado sob o título Ler o Capital. Essa pesquisa historiográfica levou à publicação de uma série de artigos densos no periódico Révoltes Logiques. Esse período de intensa pesquisa de arquivo sobre “os arquivos do sonho proletário” culminou com a publicação de sua tese principal em 1981, A Noite do Proletários. Em 1969, Rancière ingressou no departamento de Filosofia da recém-fundada Université Paris Vincennes. Este seria seu posto universitário pelo resto de sua carreira. Na década de 1990, Rancière articulou os fundamentos filosóficos que até então guiaram sua pesquisa historiográfica, com estudos importantes sobre a poética da escrita histórica, filosofia política, a filosofia da educação. Ele também tematizou seu ponto de vista crítico em relação à própria filosofia. Seus escritos nas últimas duas décadas se concentraram em tópicos e questões em estética, da literatura ao cinema, artes performáticas e artes aplicadas. Seu pensamento gradualmente ganhou destaque no mundo de língua inglesa na última década, especialmente nos campos da teoria política, educação e estética. Hoje é um paradigma influente nas partes das humanidades e ciências sociais interessadas na filosofia continental.



Lucas Parente é diretor, montador e escritor. Desenvolve pesquisas em filosofia, literatura e antropologia da imagem. Dentre seus trabalhos em cinema pode-se destacar Satan Satie ou Memórias de um Amnésico (2015), média-metragem codirigido com Juruna Mallon, e Calypso (2018), longa-metragem codirigido com Rodrigo Lima.



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