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 CONTEÚDO 

DESEJO QUE SOBREVIVAMOS POIS JÁ SOBREVIVEMOS - Bruna Kury e Walla Capelobo

#black#travestchy#prosperity#vírus

Legenda: momento em que a faixa/bandeira “mate o branco dentro de você” (frase do anarquista e ex pantera negra Lorenzo Kom’Boa) foi hasteada no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. O trabalho é de Bruna Kury e foi performada por Charlene Bicalho e Jéssica Porciuncula, durante a residência MotorHome [PPPP] - (foto por: Pedro Ermida Cruz).

Esse texto foi escrito durante a quarentena por quatro mãos como exercício de dividir a fala e compartilhar questões.

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Temos vivido uma grande luta contra uma nova pandemia mundial, a COVID-19 – corona vírus – nos chega exigindo cuidado, cuidado onde tocamos, onde vamos. Lembro de, a alguns anos, ver uma pessoa passando álcool em gel antes de segurar no ferro do metrô. Fiquei em choque, nojo de gente. Essa atitude já me soava racista, em vista de que era uma pessoa branca, que fazia isso com olhar de desprezo às outras pessoas dentro do vagão. Óbvio que devemos nos cuidar e seguir a risca a quarentena o máximo que podemos, devemos usar álcool em gel, lavar nossas mãos, higienizar. No entanto, devemos nos atentar, somos sobrecarregadas de palavras, gestos e outras representações que colaboram para a disseminação do racismo. Em nossos casos, racismo e transfobia.


Fiquemos atentes a essa política hegemônica racista que quer a todo custo nos subalternizar, podar nossas afetuosidades, segregar e nos colocar como sujes. Isso faz parte da maquinaria colonial, máquina de moer. Um olhar sob a pandemia que pensa raça, classe e gênero é fundamental! Em diversos lugares do mundo a mortabilidade é racializada. Negres sentindo ainda mais o racismo de cara lavada!


Vamos esclarecer escurecerenegrecer as coisas...


Mantenha a distância caso queira viver, isso é dito diariamente pelas grandes corporações de comunicação, uma mistura de telemedo e bioterror. Enquanto a classe média se orgulha de sua criatividade para viver a quarentena com cursos online, yoga, auto ajuda e textos motivacionais, uma parcela da população, a zona de sacrifício colonial, mais uma vez é jogada a própria sorte, endossando a categoria dos INFECTÁVEIS, corpas que pelas manobras de exclusão do cistema dependem da e são a própria rua. Pessoas sem casa estão na linha de frente, no que se refere aos riscos, acompanhadas das trabalhadoras/trabalhadores informais (camelôs, prostitutes…), indivíduos que dependem diariamente dos seus trabalhos para existirem. Aqui também cabem os serviços chamados de essenciais, como o trabalho de funcionáries subalternizades nos supermercados, farmácias, lotéricas, depósitos, assim como de entregadores de guloseimas des privilegiades de aplicativo, etc. Corpas que são marcadas pela raça (pretas y indígenas) e dissidências de gênero e sexuais. Fatores que aumentam suas infectabilidades e ressaltam a colonial e histórica ausência de políticas do cuidado. Mesmo assim, as mais vulneráveis, quando ainda têm fôlego, GRITAM.


As fronteiras, linhas forjadas nas empreitadas coloniais, hoje ganham um novo sentido: proteger do agente exterior patogênico. Proteção não a nós, mas aos interesses econômicos. Os Estados-nações renovam sua soberania com suas táticas de guerra para promover a prometida saúde e a seguridade das vidas burguesas, cisgêneras, brancas e normativas. Os mesmos estados nacionais que a meses atrás, impulsionados por políticas neoliberais, efetuavam cada vez mais cortes nas áreas sociais, se apresentam hoje como os messias da vida, com anúncios irreais de verbas monetárias a todo momento como respostas à crise sanitária. As grandes corporações aproveitam o momento de extrema fragilidade social para se auto promoverem com divulgação de valores pequenos (a pensar nos lucros que possuem) em combate ao inimigo invisível. Empresas como a Vale, mineradora ecocida, inimiga da vida em sua essência, que ao mesmo tempo doa recursos para o sistema único de saúde brasileira e impede que seus funcionários cumpram isolamento social, exigindo deles os riscos da contaminação em nome da contínua exploração mineral. Ou bancos como Santander, Itaú e Unibanco, que doam para suas próprias instituições sociais. Empresas que encaram a saúde como oportunidade de mercado, investimentos a curto e longo prazo.


Existe um desejo pela volta do normal, a vida que sempre tivemos. Mas que normal é esse? O normal são as velhas construções coloniais que corroboram para a dizimação de determinadas corpas, afinal estamos inseridas a séculos em práticas genocidas as populações pretas, indígenas, travestis, trans, boycetas, bichas, sapatonas, pessoas com diversidade funcional, soropositivas e demais dissidências. Sociedades que têm como estrutura dicotomias e binariedades, manipuladas de acordo com os interesses das hegemonias globais e locais. O novo normal, ou o pós pandemia, talvez não seja nem melhor nem pior do que já ocorria antes, apenas diferente, resultado de séculos de supressão bem sucedida de resistências e necropoder pulsante. Aos que se autodeclararam, por meio de suas máquinas de guerra, donos de tudo, o normal do futuro parece prospero.


É hora de mais uma vez reinventar as formas de se fazer vida nesse presente pouco propício a existência “humana”. Nós, da cor da terra, herdeiras das sabedorias indígenas, já sobrevivemos ao fim do mundo, também pandêmico, no século XVI. Sobrevivemos ao mesmo tempo que perdemos o nosso mundo. Nós pretas, atravessamos calunga grande e aqui fundamos presença. Nós travestis, transvestigeneres, bichas, sobrevivemos a pandemia do vírus do HIV, arma tecnobiológica normativa. Nós viemos de sobrevivências seculares do patriarcado matador. É o tempo de lembrar dessas técnicas de resistência que herdamos e utilizá-las nesse momento que enfrentamos. Pensar em casulos, ver as potências interiores para armar-se de vida, individual e coletivamente. Fase de buscar em nossas raízes as respostas que nos farão vivas e saudáveis para o caminho que nos espera. Olhar para dentro de si e lembrar o que nos faz encarnar o aqui e agora. Mirada essa que não seja narcisista como a cultura eurobranca tanto tentou nos ensinar, mas para imaginar as formas como Yemanjá e Oxum usam seus espelhos, reflexos que trazem ensinamentos de vencer guerras (I).


Para nós, dissidentes, a distância social não é algo novo. Já estamos separadas da cisheteronorma e pagamos o preço de nossas vidas seguirem caminhos trilhados pela precarização, o que faz com que nós tenhamos em mente a necessidade de um pacto de proteção contínua nesse momento que exige uma dose maior de cuidado. É necessário conjurar vida para depois do coronavírus! É sempre bom lembrar das palavras de Conceição Evaristo para dar continuidade aos processos de vivências elaborados por quem sempre soube sobreviver: “Eles combinaram de nos matar. E nós combinamos de não morrer”.


Legenda: vídeo realizado pelas autoras para complementar a escrita deste texto.

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Nota I - Mensagem transmitida por Conceição Evaristo durante live Instagram dia 14/04/2020.


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Bruna Kury é brasileira, anarcatransfeminista, performer, artista visual e sonora, atualmente reside em São Paulo (BR) e desenvolve trabalhos em diversos contextos, seja no mercado institucional da arte ou em produções de borda. Focada em criações atravessadas por questões de gênero, classe e raça (contra o cis-tema patriarcal heteronormativo compulsório vigente e a opressões estruturais-GUERRA de classes). Já performou com a Coletiva Vômito, Coletivo Coiote, La Plataformance, MEXA e Coletivo T. Atualmente investiga sonoridades no pósporno e a criação de objetuais que são ramificações do trabalho com performance. Participou da residência artística Capacete no Rio de Janeiro, Comunitária na Argentina, Festival Anormal no México, esteve recentemente compondo a organização da residência póspornopyrata em Fortaleza (CE) e performou no festival Libres y Soberanas aka Performacula em Quito no Equador.

Walla Capelobo – mata escura, lama fértil. Transfeminista contracolonial, artista e curadora independente. Graduada em Historia da Arte (EBA/UFRJ), mestranda no PPGCA –UFF. Compõe conhecimento, experimentações artísticas a partir das heranças de bem viver e existência recebida pela fina camada de sua pele. Criações que recria o mundo, sua corpa, suas dores e suas curas. Atua em grupos de estudos, Formas de habitar o presente (UFRJ) e GeruMaa: filosofia e estética africana e ameríndia (UFRJ).

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Links relacionados, sugeridos pelas autoras

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Se você pode e quer ajudar pessoas LGBTQIA+ nesse período de isolamento, as autoras sugerem algumas casas de acolhimento

Casa Aurora – Salvador-BA (@aurora_casalgbt)

Instituto Transviver – Recife-PE (@transviver)

Casa Chama – São Paulo-SP (@casachama)

Coletivo e Casa de Acolhimento LGBT+ Arouchianos – São Paulo-SP (@Arouchianos)

Casa Florescer – São Paulo-SP (@casaflorescer_)

Casa Nem – Rio de Janeiro-RJ (@casanem_)

Casa Miga – Manaus-AM (@casamigalgbt)

Astra LGBT – Aracaju-SE (@astrallgbt)

ONG Transvest – Belo Horizonte-MG (@ongtransvest)

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