top of page

 CONTEÚDO 

BUTECO – dramaturgia cotidiana de Silvestre, um musical do jornaleiro da Praça





O texto a seguir é a segunda contribuição de Silvestre Mendes de Oliveira, ou simplesmente Silva da Banca, ao blog-revista da GLAC edições. Neste roteiro musical de teatro, é quase certo que, com a ajuda da memória, quem lê vai formar as imagens do bar, das figuras que o frequentam, das discussões, brincadeiras e conflitos. As cenas que Silvestre constrói mexem com o imaginário coletivo do que é um buteco e ativa as lembranças de todos nós que somos assíduos frequentadores desses estabelecimentos. Em meio a essas imagens, Silvestre ainda cria entrecruzamentos com a violência policial, opressão de classe e de gênero, e discriminação religiosa – todos (inclusive o buteco), talvez, elementos indissociaveis da vivência brasileira.



_____________________




BUTECO

por  Silvestre Mendes de Oliveira



Roteiro musical de teatro



Atores atrizes

João / Pretinha / Manú / Mané / Ronaldinho / Medina / Bem Dito / policial / Dinorá / delegado / Guedes / Zé Bedeu


————————————————————



ATO I




 João ENTRA EM CENA


Levanta a porta do bar

Se benze

Liga a luz

Entra e abaixa a porta

Olha o relógio que marca 13:30

Caminha até o balcão

liga o rádio

sintoniza a estação

Sai do balcão

começa a arrumar o bar.

(arruma as cadeiras e limpa as mesas)

Confere se está tudo certo

Levanta de novo a porta do bar

Olha pro céu num gesto de agradecimento

 

————————————————————

 

Pretinha sentada na manicure da esquina

Fazendo as unhas

Ouve o som da porta do bar abrindo.

Levanta vai até a porta do salão e olha pro bar.

Volta pra terminar as unhas com Manú

 

————————————————————


Diálogo

Pretinha / Manú (manicure)

 

MANÚ

Esse seu João é um cara de compromisso: abre às duas da tarde em ponto, há mais de vinte anos!

 

PRETINHA

Pois é, Manu, o cara rala pra caramba e não dá conta de pagar o sistema nem os fornecedores, tá foda... Hoje vai ter um samba lá, e justo hoje, que tô de folga, ele me chamou. Vô lá dá uma ajuda pra ele --- a rua tá difícil, amiga... Tenho que chegar às 3 horas, senta o alicate aí, Manú.

 

MANÚ

Já tô terminando, só falta essa última cutícula, já que você não quer pintar.

 

PRETINHA

Ai, ai, aaaai!...

 

MANÚ

 Fica quieta, Pretinha, foi só um bifinho!

 

PRETINHA

Então, queria até pintar, mas como vou ajudar o João, vai acabar estragando. Coloca só uma base mesmo e tá bom.

 

MANÚ 

Prontinho, viu como foi rápido?

 

PRETINHA 

Valeu, Manú, bom trabalho, ficou linda. Assim que o João me pagar, venho acertar contigo. Beijo.

 

MANÚ

Vai em paz, Nega. À noite eu encosto lá, tchau.

 

——————————————————————


(Pretinha sai Manú fala consigo mesma)

 

MANÚ

Essa “Bruninha” é foda.. Rala pacarai...


——————————————————————

 

Pretinha sai do salão

destrava a bicicleta

Não monta vai empurrando a bike

atravessa a rua andando até o João

Encosta a bike

 

————————————————————


 Diálogo

João / Pretinha


JOÃO

Oi, celebridade... tudo bem?

Chegou cedo hoje.

  

PRETINHA

E aí, seu João, tudo beleza?

Eu estava ali na Manú fazendo as unhas... Vô lá na goma guardar a magrela, tomar uma ducha, e já, já eu volto.

 

JOÃO

Conto contigo, irmã!

 

PRETINHA

Estou viva, seu João, não se preocupe. Confia na mãe que não vou ramelar na missão. O senhor sabe que a vida não dá colher de chá, trabalhei até de madrugada mas tô na área, se eu for viver só da rua, morro de fome. Até daqui a pouco. Hoje o bicho vai pegar.

 

JOÃO

Vai lá, fia.

 

PRETINHA

É nós, seu João, partiu chuveiro.

 

————————————————————

 

Pretinha monta na bike

O traseiro fica bem empinado

João não tira os olhos até ela virar a esquina.

 

————————————————————

(João entra pensativo, falando sozinho)

 

JOÃO

 Ah, se eu tivesse uns 20 anos a menos...Nem precisava do azulzinho.... Rá, rá, rá, rá! Mas a preta tá em outra, nem tão cedo vai querer homem fixo na caminha dela.


João pega os tacos de sinuca em cima da mesa, coloca no suporte. Vai pra detrás do balcão.


Chega o primeiro freguês.

 

————————————————————

Primeiro cliente: Mané

 

Mané entra no bar

Vai até o balcão

Apoia o braço


Diálogo

Mané / João

 

MANÉ

Salve, seu João, vamos começar os trabalhos, põe aquela e passa a régua.

 

JOÃO

Começando cedo, camarada!

 

MANÉ

A gente tem que se hidratar... Aproveita e me dá aquele torresmo peludo, não, não, me dá aquele ovo rosa.

 

JOÃO

Vai pimentinha?

 

MANÉ

Manda!

 

(Mané fica batucando no balcão, acompanhando o samba no rádio.)

 

JOÃO

Conhece esse samba, Mané?

 

MANÉ

Já ouvir muito no rádio. Bom pacaralho !

Quem são esses cara?

 

JOÃO

Ah, esse pessoal é o “Lado B”, que as grandes gravadoras não querem gravar. São os “Bocas de Versos” um grupo que toca aqui nas quebradas da zona leste. Aliás, hoje eles vão fazer uma roda de samba aqui. Pinta aí de noite.

 

MANÉ

Pode crê, sei quem são. Rapaziada promissora, sempre fazendo coisa nova. Uma hora eles vão estourar!

 

JOÃO

É isso aí! Puxa uma cadeira aí, Mané, deixa eu esquentar o mocotó.

 

————————————————————


Panela no fogão

João cantando ao som do rádio


————————————————————

 

 

Cliente chegando (MEDINA)

Sotaque (nordestino)

 

————————————————————

 

Diálogo

Medina / João 


MEDINA

Salve, seu João!

 

JOÃO

Fala aí, mano Medina!

 

MEDINA

Tô sentindo cheiro de mocotó, vou querer um pra segurar a bebedeira. Tá reservada aquela mesa ali ou posso sentar?

 

JOÃO

O que é isso, camarada? Malandro não senta, malandro se acomoda... rá, rá, rá, rá!

 

MEDINA

Vacilei, seu João, um a zero pra você. Olha: junto com o mocotó, manda aquela gelada pra mim!

 

JOÃO

Ao seu dispor, camarada! Se acomode que eu já chego aí;


—————————————————————


João leva cerveja e o mocotó até a mesa, e já cumprimenta outro casal que acabou de chegar.

 

JOÃO 

Vamo chegando que eu já vou trazer o cardápio, o mocotó acabou de sair.

 

—————————————————————


O Bar começa a encher.

Pretinha chega de vestido curto e o pessoal torce o pescoço pra admirar a moça.

 

————————————————————

 

Cochichos dos clientes

 

CLIENTES 

(Seu João é que é feliz, uma funcionária assim todo mundo queria!)


(Eu pagava o dobro pra ela trabalhar pra mim...)

 

(Quero ser servido por ela!)

 

(A cerveja pode até vim quente, mas bebo assim mesmo!)

 

————————————————————


PRETINHA

Tamo na área seu João, já vou atender ali.

 

—————————————————————

 

Pretinha chega pra atender “Bem Dito”.

 

—————————————————————

 

(João olha de lado

Fala consigo mesmo)

 

JOÃO

Isso não vai prestar...

 

—————————————————————

 

Bem Dito nem espera pretinha mostrar o cardápio e começa o xaveco.

Em dueto musical


————————————————————

 

Primeira cena musical

 

( dueto musical)

PRETINHA x BEM DITO



BEM DITO 

Vamo lá pra casa, Pretinha

Tira esse avental

Quero você só pra mim

Deixa esse povo pra lá

 

PRETINHA

Sai pra lá, seu vagabundo

Vê se deixa de xaveco

Vim aqui pra trabalhar

Respeite o nosso boteco


BEM DITO

Pra que tanta brabeza

Eu só quero te ajudar

Não me maltrate assim, Ó Pretinha

Senão eu posso gamar.


PRETINHA

Tu não merece resposta, malandro

Não vê que eu vim trabalhar

Pra você eu dou as costa

Vê se tu vai te catar

 

BEM DITO

 Por você eu cato lixo

Posso até lamber o chão

Não me maltrate assim, ó Pretinha

Tu manda no meu coração.

 

(Breque pra terminar )

 

PRETINHA

Vixi, eu nunca vi malandro que é malandro lamber o chão!

 

(Sai, vai atender outra mesa)


————————————————————

 

Bem Dito fica revoltado na mesa


————————————————————

 

Pretinha continua em movimento, limpando mesa,

enquanto o pessoal vira o pescoço pra acompanhar.

 

———————————————————


Mulher discutindo por ciúmes da Pretinha,

Repreendendo o companheiro.

 

(Bar lotando)

 

Samba tocando no rádio

 

Pretinha sai no rebolado, chega no balcão.

————————————————————

 

PRETINHA

Seu João, vou no banheiro.

 

————————————————————

 

Ela sai, Bem Dito vai atrás da Pretinha no banheiro e começa a xavecar.


————————————————————

 

Diálogo

Bem Dito / Pretinha


BEM DITO

Olá, minha beldade, tem um tempinho pra mim?

 

PRETINHA

Vaza, malandro, que não quero papo e tenho muito serviço!

 

BEM DITO

Acredita em amor à primeira vista?

 

PRETINHA

Quem vai na conversa de pato é ganso, essa cartilha eu conheço de cor e salteado. Deixa eu voltar que o bar tá lotado, e não quero saber de lorota.

 

BEM DITO

Nem depois do expediente?

 

PRETINHA

Nem depois do funeral! Vaza, malandro!

 

————————————————————


(João-chama pretinha pelo nome)

Bruninha, tem mesa pra ser atendida.

 

(PRETINHA)

Tô indo, seu João, deixa eu despachar esse mala!

 

Pretinha mostra o canivete e ameaça Bem Dito:

 

(PRETINHA)

Respeito é bom e conserva as bolas no lugar, malandro! Sai fora!

 

—————————————————————-

 

(Bem Dito volta magoado, senta, bebe o copo de um trago e começa a cantar _

 

————————————————————


Segunda cena musical

 

Melodia de valsa

 

(Bem Dito cantando )

 


Mesmo que me acabe com seu veneno 
     

Eu mordo a maçã...

   No seu conto de fadas em vez de príncipe 
   

Eu sou só o vilão.

    Parece que nossa história
 

 Até agora não tem solução...

  Mas no seu conto de fadas

Caio na cilada com satisfação...

 

Neste show da vida nossa canção ainda não tocou

Como um botão de rosa que ainda não desabrochou

Daí eu volto pro bar, na cachaça vou me afogar

E vou beber cada lágrima que rolar...

 

(João chega pra conversar com Bem Dito)

 

JOÃO

Eita, Bem Dito, hoje é dia de festa, sem chororô no meu bar!

 

BEM DITO

Pois é, seu João, vou terminar o goró e saltar fora, afinal, Nega Celeste anda me procurando, e eu fico aqui perdendo tempo com a Pretinha... Partiu, Mangueira!

 

JOÃO

Se liga, malandro: Pretinha tem compromisso, e tu já viu que não vai rolar, vai atrás de outro amor!

 

BEM DITO

Inté mais, seu João! Aquele abraço!

 

————————————————————


Seu João cantando

 


Terceira cena musical

 

"De mala e cuia"

 

De mala e cuia foi embora pra Mangueira

Atrás de uma duvidosa mulher

Deixou pra trás seu tamborim e seu pandeiro,

Até a camisa verde-branco de fé.

 

Meu amigo, te confesso, a saudade que me dá

Sinto falta dos seus versos 


Partideiro como o estimado,

Faz tempo não vejo mais

 

Mas se for encontrar felicidade

Ficar por aí é o melhor que você faz...

Mas dê notícias pois eu guardo aqui comigo

O seu pandeiro com carinho, meu amigo...

 

 

 

ATO II


 

João / Ronaldinho / Guedes / músicos / Bedeu / Zé navalha / policial / Dinorá

 

Atores João / Ronaldinho / Guedes / músicos / Bedeu / Zé Navalha / Pretinha / policial / Dinorá

 

————————————————————

 

Chega Ronaldinho, elegante, dando passos de dança;

 

(RONALDINHO)

Esse samba é lindo, seu João! É coisa sua?

 

————————————————————


Diálogo

João / Ronaldinho

 

JOÃO

Olha quem tá chegando, Ronaldinho Pé de Valsa!

 

RONALDINHO

Tamos aí, seu João! Que horas vai começar a gafieira? Já estou aquecendo, e hoje eu vim alinhado, dá uma olhada nessa carrapeta, olha esse paletó, se liga na estica do malandro!

 

JOÃO

Tá elegante toda a vida, Ronaldinho! Passou naquele brechó que eu tô ligado, só pano da hora!

 

RONALDINHO

Pois é, seu João, sabe que a parada é uma pedreira pra gente roer, mas malandro não se aperta, dá seu jeito! Põe aí aquela branquinha, camarada!

 

JOÃO

A de sempre?

 

Ronaldinho (faz gesto de “espremer”)

Pinga aquele limãozinho!

 

(Grupo de músicos chegando)

 

"Local reservado para músicos"

 

Músicos acomodando os instrumentos

 

Líder dos músicos chega no balcão (Guedes)


————————————————————

 

Diálogo

Guedes / João 

 

GUEDES

Fala, seu João!

 

JOÃO

E aí, camarada Guedes, como é que tá?

 

GUEDES 

Contente, camarada... Tamo trabalhando muito, a resposta do público tá legal, mas a bolacha tá complicado, nossos fonogramas vão contra o sistema dos poderosos... Aí fica difícil... mas tamo nas paradas, somos os primeiros da ZL!

 

JOÃO

Fico feliz pelo amigo, tudo vem no seu devido tempo. Viu aí quem tá na área? Olha a estica do malandro que veio curtir o samba!

 

GUEDES

Grande Ronaldinho, o mais elegante da Zona Leste, traje a rigor em qualquer ocasião! Esse é um clássico do samba!

 

RONALDINHO

Epa, camarada! Tá querendo dizer que eu virei enredo? Quero ver essa parada ai!

 

GUEDES 

Só se fora agora !

 

—————————————————————

 

Guedes dá um bico na cachaça

 

Estala a língua e saboreia como se fosse a fonte da inspiração.

 

GUEDES

Hum, essa aqui é alambicada...

 

Coloca o copo no balcão,

batendo o copo já fazendo batucada.

 

Tic tic tic tic tic tic tic

 

Tira caixinha de fósforo do bolso com elegância, pega o ritmo e canta.

 

—————————————————————

 

*ATENÇÃO ( música pode ser trocada )

 

(Você chegou na gafieira) OU se você for na gafieira)*

 

 

—————————————————————

Música 1


Você chegou na gafieira

Com seu belo paletó

Trouxe junto a nega Dithe

Porque você não anda só

 

Não vá só, não vá só

não vá só, não vá só

não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

 

Carrapeta quatro e meio, antiderrapante

Sincopado dividido

Zigue-zagueante

Sincopado dividido

birigüigui dançante

 

Não vá só, não vá só

não vá só, não vá só

não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

 

Botou aquele almíscar

Passou goma no cabelo

Pente fino no topete

Até descolou um dinheiro

Pra tomar uma branquinha

Antes do saracoteio

 

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

 

—————————————————————

 

Música 2

 

Se você for na gafieira

com seu belo paletó

leve junto a nega Dithe

por favor, não ande só

 

Não vá só, não vá só

não vá só, não vá só

não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

 

Carrapeta quatro e meio, antiderrapante

Sincopado dividido

birigüigui dançante

Sincopado dividido

Zigue-zagueante

 

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

 

Botou aquele almíscar

Passou goma no cabelo

Pente fino no topete

Até descolou um dinheiro

Pra tomar uma branquinha

Antes do saracoteio

 

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

 

Nega Dithe fez prancha no cabelo

Unha feita, maquiada

Lavou os panos com capricho

Deu uma boa passada

Vai sair toda produzida

Cheirosa e empetecada

 

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

Não vá só, não vá só

 

Se você for na gafieira

com seu belo paletóóó. . .

 

—————————————————————


Guedes Interrompido

 

músicos chamando Guedes

—————————————————————

 

MÚSICOS

Ai, mano Guedes, encosta pra fazer aquele espetáculo que o público tá esperando.

 

—————————————————————

Guedes fala pra Ronaldinho:

 

GUEDES

Depois termino essa história, vamos começar o samba!

 

—————————————————————


Guedes sai tocando a caixinha de fósforos em direção à banda.


—————————————————————

O bar se anima, povo levanta pra dançar.

 

Músicos tocando, povo dançando e o bar bombando.

 

—————————————————————

 

Entra o pai de santo no bar

 

Todos os presentes olham pro recém-chegado.

 

Pai de santo encosta no balcão

Burburinho entre os presentes.

Todo mundo de olho no pai de santo.


—————————————————————

 

Diálogo

João/ Bedeu


 

JOÃO

Saravá, pai Bedeu.

 

BEDEU 

Saravá, mizifio.

 

JOÃO

Quanto tempo não lhe vejo, meu pai.

O que meu pai vai beber? O de sempre?

 

BEDEU

Mizifio sabe que num sou de mudar, o universo é que muda!

Andei resolvendo umas paradas por aí, ainda não terminei, mas acho que hoje finalizo.

 

(Bedeu olha de lado, de cara feia, mirando um desafeto)

 

JOÃO

Vai com calma, meu pai, olha quem veio aqui me ajudar!

 

BEDEU

Tô ligado, seu João, a Pretinha alegra o clima do ambiente. Mizifio: põe aí a segunda. Alguém que bebe comigo não tá satisfeito com uma pessoa aí...

 

JOÃO

Vá com calma, meu pai, estou pressentindo algo no ar... Por enquanto o clima é de festa, pega leve, por favor.

 

BEDEU

Agora mizifio também deu pra fazê previsão?

 

—————————————————————

 

Bedeu acende o charuto em modo de ritual pra incorporar o guia (Zé Navalha)

 

—————————————————————

 

João sai de lado pra se ocupar de outras coisas (lavar copos etc.), com cara de desconfiado.

 

—————————————————————

 

Povo do bar cochichando sobre Bedeu.

 

(Não é aquele pai de santo que…. É ele mesmo... O homem tava guardado...  zumzumzum...)

 

—————————————————————

 

Policial na mesa fala em voz alta com Dinorá, o povo olha

 

—————————————————————

 

Diálogo

Polícia / Dinorá

 

Policial

Dinorá, esse aí não é aquele pai santo que eu dei um sacode e levei pra delegacia?

 

DINORÁ

Sim, FULANO, é aquele charlatão mesmo, ele teve o que mereceu. Parece que ele voltou de boa, depois do sacode.

 

Polícia

É ele mesmo... o charlatão da praça da Sé, rá, rá, rá, rá...

Até fiz um samba pra ele... Vou falar com os músicos e esculachar esse 171.


—————————————————————

 

Polícia levanta vai até os músicos e pede:

 

Polícia 

Dá um ré maior aí, maestro.


—————————————————————


Policial cantando 


Quinta cena musical

 

Zé Bedeu dizia que era adivinhador

Que era vidente, que previa o futuro

Na hora H, o Seu Zé se enrolou

Em vez de revelação, mostrou que era charlatão

Quem fala demais só se mete em confusão...

 

Barraca armada, a clientela chegou

Zé disse nada com nada

O povo todo se irritou.

Dinorá era brava, daí o pau comeu

Quebraram o braço, a perna e o nariz do Zé Bedeu.

 

Chamaram a viatura, foi a maior confusão

Puxaram a capivara, não era surpresa, não.

O cana bravo chiou com relatório em mão.

Zé Bedeu 171, vou te mandar pro cadeião.

 

Sentaram o pau

No malandro do Zé Bedeu

Vai enganar em outra área

Aqui quem manda sou eu.

 

Sentaram o pau

No malandro do Zé Bedeu

Vai enganar em outra área

Aqui quem manda sou eu.

 

—————————————————————


ATO III


 

ZÉ BEDEU (grita) 

Parou a música!

 

Música silencia. Povo espantado.

 

Zé Bedeu puxa a navalha

 

Dá risada no meio do salão

 

Incorpora Zé Navalha, chama pra briga.

 

Anda elegante e malandreado.

 

Policial fica de um lado da mesa de sinuca e Bedeu do outro


————————————————————

Diálogo

Bedeu / Policial

 

BEDEU

Pra você, policialzinho de meia tigela, deixo a navalha e só uso as pernas!

 

Policial

Seu tempo já era, seu charlatão, vou te ensinar a não enganar mais ninguém.

 

(Rodam ao redor da mesa com ginga de malandro, ameaçam pegar os tacos)

 

PRETINHA

Vamos acalmar, pessoal, hoje é dia de festa!

 

Policial

Cala a boca, sua vadia!

Tu tá me devendo duas semanas!

(Dá um tapa na cara da Pretinha)

 

PRETINHA

Na rua estou acostumada com isso, mas essa foi a última vez! Sua hora vai chegar!

 

BEDEU

Fica na sua Pretinha, vou dar um jeito nesse covarde.

 

JOÃO (bate no balcão e berra)

Gente, não quero confusão no meu bar! Se querem se matar vão pro meio da rua!

 

BEDEU

Tudo certo, seu João, a encrenca não é contigo, mas seu pedido é uma ordem. Vou dá uma lição nesse sujeitinho mequetrefe.

 

————————————————————

 

A ginga começa na porta do bar, ambos saem fazendo estrelinhas até a calçada.

 

Ginga de capoeira

 

Povo faz a roda

 

Bedeu acerta o policial

 

Policial saca a arma

 

Bedeu desarma o policial e joga a arma fora.

Pega a navalha e golpeia a bunda do policial;

 

BEDEU (olha pra Pretinha)

Agora é sua vez, cumadi!

 

Pretinha usa o fiel canivete e dá uma, duas, três espetadas na bunda do policial, descontando os tapas que levava na rua.

 

 

Dinorá ajuda o policial a levantar; ele sai desmoralizado.

 

BEDEU (grita):

É o fim da exploração no jogo e das meninas!

 

O povo aplaude e vibra:

Êêêêêêêêê. . .

 

————————————————————


No fundo a banda canta a música de Zé Bedeu


—————————————————————


Quinta cena musical

 

Ô Zé Bedeu...

Ôô ô Zé Bedeu...

Pra colheita de milho?

Bedeu não vai!

Pro engenho de cana?

Zé também não vai!

Pra catar café?

Ai... é que Zé não vai!

 

O que é que você quer ô Zé?

Zé Bedeu só quer paz, bom rapaz

O que é que você quer o Zé?

Zé Bedeu só quer paz, bom rapaz

 

É que Zé é retirante

Lá das terras da Bahia

Seu Zé não cumpre ordem

Da senhora burguesia

 

O que é que você quer, ô Zé?

Zé Bedeu só quer paz, bom rapaz

O que é que você quer, ô Zé?

Zé Bedeu só quer paz, bom rapaz

 

E se vier pra cima

Zé joga capoeira

Sabe brigar de mão

Também é bom na peixeira

 

O que é que você quer, ô Zé?

Zé Bedeu só quer paz, bom rapaz

 

O que é que você quer, ô Zé?

Zé Bedeu só quer paz, bom rapaz

 

Pode vir o capataz

Que o Zé tomba pra trás

Cai também o sargento

Sai todo sangrento

E se vier o capitão

Peixeira na mão

E se vier o general

Seu Zé cobre no pau

 

Porque Zé só quer paz

Zé não quer confusão

Zé não leva desaforo

Zé resolve na mão

 

O que é que você quer, ô Zé ?

Zé Bedeu só quer paz, bom rapaz

O que é que você quer, ô Zé?

Zé Bedeu só quer paz, bom rapaz

 

————————————————————

 

Zé entra, vai no balcão e pede uma cachaça.


—————————————————————

 

BEDEU

Seu João? Põe aquela e passa a régua.

 

JOÃO

É pra já, mas é melhor cê dar o fora, porque aquele cana vai voltar com reforço.

 

BEDEU

Aquilo é covarde, Mizifio. Bedeu vai mas é por outros motivos, o puto daquele policial não volta mais aqui. Passou vergonha.

O que era dele tava guardado. Até a chefia dele se emputeceu com o safado... Já era! Agora a Pretinha tá livre.

 

————————————————————

 

O abridor de garrafa cai no chão; João abaixa pra pegar e, quando levanta, só vê fumaça. Bedeu desaparece.


————————————————————

 

Pessoal voltando pro bar

Burburinho nas mesas

Samba tocando

Pretinha servindo

Seu João no balcão

 

——————————————————

Para um carro de polícia em frente ao bar.

Delegado desce da viatura, entra no bar e berra:

 

DELEGADO

Parou a música!

 

Caminha até seu João e começa o diálogo

 

 

DELEGADO 

Recebemos uma denúncia, mas já sabemos o que aconteceu. A gente já esperava por isso. Quem planta, colhe. Agora, quem manda na área somos nós. O policial quebrou o acordo com os parceiros e nós vamos assumir a parada. Vai ser bom pra todo mundo.

 

JOÃO

Tudo bem, seu delegado, tudo bem... Já tô acostumado com essas coisas, só me fale o dia do acordo... (esfrega os dedos significando dinheiro) que eu já vou planejando.

 

DELEGADO

A jogatina e o bicho vão continuar a funcionar, as meninas vão ter o nosso apoio e proteção porque atraem freguesia. Ninguém mais vai abusar delas. O acerto das jogatinas vai ser quinzenal: cada duas semanas, meu pessoal passa aqui pra fazer o recolhe. Essa semana tá perdoado, aqui o papo é reto: libera duas caixas pro pessoal e a gente abate o custo na quinzena.

 

JOÃO

Combinado, seu delegado: a gente corre atrás da bola... e o senhor apita o jogo.


——————————————————————

 

Apertam as mãos

Polícia sai

 

João fala com os músicos pra aumentar o som.

 

JOÃO

Som na caixa, moçada!

 

O bar continua animado, e o vozerio aumenta.

 

————————————————————-

 

 

João vai até os músicos e pede licença pra um anúncio.

Pega o microfone e comunica:

 

JOÃO

Atenção, pessoal! A próxima rodada é por conta da casa, porque hoje não vou ter que pagar aquele polícia mequetrefe!

 

Plateia vibra:

Ebaaaaaaa!. . .

 

João com o microfone pede um tom aos músicos e canta.

 

——————————————————————


Última cena musical

 

Seu João cantando

 

Já tô cansado de bancar o otário

Me matando por um salário

Que nem dá pra sobreviver

Tudo que ganho já tem sua direção

Imposto, polícia e ladrão

Todos do mesmo metiê

 

Descobre um santo pra poder cobrir o outro

Cada dia mais difícil a minha situação

Devo no crédito tô sem débito e agora 


Como se não bastasse devo polícia e ladrão

 

Devo no crédito tô sem débito e agora 


Como se não bastasse devo polícia e ladrão

 

Por onde passo sou balaio de quitanda

Todo mundo olha de banda com cara de cobrador

Já estou farto de tanta amolação

Deixei até o meu fusquinha como penhor

 

Vou dá um jeito de sair dessa pendura

Vou vender alguma coisa pra poder me aprumar

Vou botar uma barraca de cachaça

Uma dose cinquentinha, meiotinha um real

Boto uma placa na frente da barraquinha

Não vendemos fiado não insista por favor

Aí quem sabe, até o fim do dia 
Se eu não beber o estoque

Um trocado já entrou

 

Aí quem sabe, até o fim do dia

Se eu não beber o estoque

Um trocado já entrou

 

 

FIM

 



*



Silvestre Mendes de Oliveira, ou mesmo, como é mais conhecido, Silva da banca, comanda a Banca Corredor Cultural há mais de 20 anos, que além dessa tem outras bancas, espalhadas pela cidade. A banca da praça é conhecida pela receptividade e o carisma de seu dono, por ser ponto de encontro de vizinhos - um salve pro Clube da Banca, que reúne um pessoal na banca há uns bons anos- e pessoas que trabalham no entorno. A banca trabalha com os livros da GLAC, além de quadrinhos, livros de literatura, teoria política, história de lutas populares, além dos itens que geralmente são encontrados em bancas de revista, como jornais, publicações de moda e decoração e palavras-cruzadas. A Banca Corredor Cultural está localizada na praça Dom José Gaspar, no centro da cidade de São Paulo, em frente à Galeria Metrópole e próxima da Biblioteca Mário de Andrade, a mais importante da cidade.

 

Comments


 NEWSLETTER 

Está gostando do nosso blog e gostaria de saber com antecedência o que estamos publicando, sem ter que visitar a página toda semana? Se cadastre e receba semanalmente as notícias do blog, pré-lançamentos e promoções para os cursos e afins! 

 CONHEÇA A GLAC 

bottom of page