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 CONTEÚDO 

A PALAVRA É VÍRUS - Wander Wilson e André Arias


Legenda: William Burroughs é mais conhecido pela sua literatura, sua relação com a chamada geração beat e por seu uso de opioides. Um de seus livros, Almoço Nu, foi publicado em 1959 apenas na França. O livro ficou censurado por ser obsceno e perigo nos EUA até o ano de 1966. A expressão “A palavra é vírus” é repetida em diversos contextos pelos seus trabalhos. Também foi pintor e produtor de colagens. Seu trabalho fotográfico foi retomado recentemente na exposição Taking Shots. Esta é uma de suas fotos, descrita do seguinte modo: Sem título, provavelmente em Londres, provavelmente em 1972.


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Em alguns começos havia a repetição…

e a repetição produziu sua própria diferença


As epidemias expressam uma medição, uma velocidade da curva de contágio em relação a uma doença localizada em uma população específica. Agem nas fronteiras de Estado com recortes administráveis. As pandemias alertam de que uma fronteira foi rompida, algo saltou de um território ao outro. Age na multiplicação de Estados e suas comunicações. Um Estado só vê outro Estado.

Do ponto de vista do vírus só existe a replicação, os seus saltos e conexões entre as superfícies. Suas entradas nas células, sua replicação indistinta. Uma das narrativas que compõe a imaginação ocidental sobre a evolução das espécies nos diz que o vírus apareceu saltando de uma célula pronta. Um erro de salto que era para se dar entre os limites celulares de um organismo rumo ao espaço do aberto. Existem muitas narrativas sobre o surgimento deste microrganismo. Existem vírus em nós que coexistem em nosso corpo chamado humano, outros nos habitam como registro de um passado, espécie de vírus fossilizados. Estes vírus nos comunicam, por meio de um salto histórico, de que estes humanos teriam parentesco com os primatas. Proximidades de fósseis virais.

Um vírus se replica, se repete e, se repetindo, (re)produz sua própria diferença. Este novo microrganismo carrega algo de sua antiga formação na sua inscrição genética atual. Velhas e novas gripes, velhas e novas palavras. Simultânea e paralelamente à pandemia do novo coronavírus, muitas palavras também ganham a insistência das repetições. Este outro corpo, este corpo-palavra, pode vir de todo canto: de um primeiro cristão, de seu vizinho, de sua tela ou deste texto. As palavras são especialistas do salto.

A partir de hoje, semanalmente, a GLAC edições lança uma série de pequenos ensaios chamado A palavra é vírus, expressão recortada do beat William Burroughs. Esta proposta faz parte de um esforço coletivo de pensar os sentidos em mutação das palavras que atravessam a catástrofe, agora decididamente planetária. Palavras sinalizam embates de forças que se passam aquém da linguagem, produções inscritas em nossas vísceras. Nesse sentido, trata-se menos de uma organização de reflexões sobre a pandemia do que uma especulação pragmática situada nos problemas que se colocam no corpo a corpo, esta mistura de objetos, palavras, vírus, gentes, fluxos, streamings, em suma, tudo o que conflui para a produção da percepção do que nos acontece e nos atravessa.


Em maior ou menor grau, a peste impôs a todas e todos, à “espécie humana”, o mesmo regime da catástrofe, uma nova distribuição de quem é digno de vida ou de morte. A pandemia nos lembra que não existe encerramento possível de um corpo em um invólucro datado como indivíduo e que as fronteiras do Estado são a normalidade do etnocídio prolongado. Ainda que a nuvem de fumaça de metal que a chaminé da fábrica capitalista sopra no mundo possa potencialmente penetrar nos poros de todos os corpos, essa economia da vida e da morte persiste em afetar sempre mais violentamente os corpos de classes, raças, gêneros, povos e outros modos de vida específicos, os expropriados do mundo. É do ponto de vista corporizado nesses saberes expropriados que esta série se lança ao exercício de pensar o novo normal de relações que se desenha sob a emergência geral em que nos encontramos.

A cada segunda-feira sairá um ensaio diferente relacionado a uma palavra que se repete. O convite para escritora/es é feito na forma da expressão “pensar com a palavra”. É preciso abrir a linguagem como se abre uma lata. Isto tem pelo menos duas implicações. De um lado, é possível fazer a palavra deslizar, assim como os vírus pelas superfícies das coisas. Compor com elas para que produzam sua própria mutação. De outro, é possível que se registre suas fossilizações e evidencie suas conexões de força.

Um Estado só vê outro Estado porque o ponto de vista está situado na identidade. Só reconhece a si mesmo. Daí os massacres cotidianos das diferenças, sua colonização inerente. Uma palavra evoca um desses embates diários que força o pensamento ao movimento. Nos termos da língua pode-se evidenciar o verbo ser, pronto para cristalizar algo no imutável. A identidade é única, como na categoria pátria. Um só povo, o povo brasileiro pronto para colonizar suas diferenças internas com um banho de sangue. Uma pulsão de suicídio.

Os artigos definidos O e A definem caminhos. Como nas expressões “O único método revolucionário” e “o fim de mundo”. Define-se a trajetória do universo que termina no apocalipse com ou sem reino. Abrir a língua seria da ordem da indeterminação. Remover o sujeito é remover a sujeição. Não mais o fim do mundo. Agora, um fim de mundo. Uma pequena mutação para novos povoamentos.

Sair da repetição pela diferença é sair da lógica de Estado. Esta entidade que cai do céu também se multiplica, no entanto, este processo ocorre pela identidade e pela falta. Ali, onde há a lacuna ele enraíza um indivíduo, um gênero, um único povo, uma psique, uma família... Maior que lista telefônica antiga.

Pensar com o vírus é pensar as possibilidades da repetição: o mesmo e a diferença. Evidenciar os combates diários das forças em luta e fazê-los deslizar por espaços outros é um problema da ordem da percepção. Por isto os textos que aqui estarão não possuem exigência de forma. Abrir a linguagem é propiciar a experimentação. Experimentar a língua é lograr-se na diferença. Trata-se da produção de estados alterados da percepção que possam rastilhar diferentes fagulhas de artes de viver nos tempos da catástrofe.


Seguimos nos emaranhando pelas segundas.

Saúde!




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Wander Wilson segue na tentativa de praticar antropologia como quem pratica artes marciais. Escreve com estranha frequência no Blog da editora Sobinfluência. Faz parte do coletivo que inventa a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI). Pesquisa drogas, a chamada saúde mental e outras cositas mais. E-mail de contato: wanderwi@gmail.com


André Arias pesquisa filosofia do processo e capoeira no Senselab, laboratório de pesquisa-criação, baseado em Montreal. E-mail de contato: andre.fogli@gmail.com

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