Legenda: imagem do filme Xapirimuu de Sebastian Wiedemann. Conheça o trabalho do artista-pesquisador aqui.
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Nestes dias, nossas vidas estão envelopadas individualmente.
Kenneth Bailey and Lori Lobenstine 2020.
Eu nasci em um tempo de distanciamento social.
Fred Moten, 2020.
A fantasia final do distantismo.
Clark, 2017.
John Lee Clark faz parte de uma comunidade de surdos e cegos que luta pelas suas vidas. “A forma pela qual muitas culturas se desenvolveram baseadas quase que exclusivamente na visão e na audição nos é lesivo. A insistência na visão e na audição para que a sociedade funcione significa somente uma coisa para nós: a morte” (Clark, 2017).
Enfatizar a visão e a audição privilegia a ideia de que o mundo nos chega à distância. O chamado de Clark à sua comunidade pede que este distantismo não seja mais nutrido. “As pessoas que enxergam e escutam estão equivocadas ao usarem seus sentidos de distanciamento, deixando que afete o modo como vivem? Não. Se eles desejam ser só olhos e ouvidos, que façam bom proveito de existir assim. Não há nada de errado em ser organizado e eficiente. Mas temos um problema quando eles nos impõem seu distantismo” (Clark, 2017).
O distantismo não diz respeito a uma distância real. Não se trata de distância versus proximidade. O distantismo é uma norma moral imposta à experiência: a vida com propriedade é manter as coisas distantes. Minha propriedade, sua propriedade. Minha ideia, sua ideia.
Espera-se que a comunidade de surdos e cegos considere literalmente o binarismo minha-propriedade-sua-propriedade, propagado pela influência mediada do capital neoliberal. Confie em nós, nós o dissemos, à distância, é assim que é. E, por favor, não perturbe a ordem das coisas! “Mas quando saímos para explorar ou apenas existimos, as pessoas que podem ver e ouvir se apressam para intervir. Eles podem nos ajudar? Por favor, sem nos tocar. Elas ficarão contentes em descrever as coisas para nós. Elas nos guiarão. Não há por que se incomodar, eles nos trarão as coisas. É bem mais fácil dessa forma. Olá. Meu nome é Katie e eu sou sua Interventora” (Clark, 2017).
Ser obrigado a andar no meio da calçada (na postura do distantismo) não significa somente não ter nenhuma experiência da borda visível que chamamos de limite da propriedade, mas significa também não ter nenhuma noção do começo ou do fim das coisas. O resultado é um vazio que só é preenchido pelas impressões de quem o navega - o interventor que tudo vê e que narra o mundo à distância.
Sentir o mundo é pisar na grama. Sem metáfora aqui: a irregularidade da superfície do solo nos diz muito sobre onde o espaço eficaz começa e a vida termina. "Mesmo quando os menos privilegiados estão espremidos juntos uns dos outros devido à pobreza, à exploração, ou por punição, o distantismo se manifesta nas linhas longas, celas apertadas e cubículos, e, acima de tudo, com eles sendo removidos da vista e da audição" (Clark, 2017). A pobreza é repelida pelo mesmo gesto que policia os limites da propriedade. A propriedade exige isso.
"Um outro termo que é mais acurado, mais preciso… é segregação" (Moten, 2020)
Kenneth Bailey e Lori Lobenstine falam de arranjos do capital para tocar esse limite indizível, mas muito real, entre o vivido e o eficaz. Os arranjos são, tal como eles os entendem, dramaturgias para o estabelecimento da vida individual (o que quer dizer, ficar separado). O capital racial, eles advertem, "nos distribui de maneiras que produzem efeitos" (Bailey & Lobenstine, 2020).
A Covid19 é o pano de fundo da advertência de Bailey e Lobenstine. Mas o distantismo era uma questão muito antes disso, e tem a segregação e os limites da propriedade como seus campos de referências. O distanciamento social sempre significou manter alguns de nós excluídos. Isso não é diferente hoje, no momento viral do coronavírus. A suposta "liberdade" perdida por causa da distância física é uma liberdade assegurada apenas para aqueles que tomam o distantismo como algo certo, a ponto de assumir que todas as vidas pré Covid19 funcionavam como em um romance meritocrático nos termos da calibragem dos distanciamentos.
Uma lógica de aproximação da proximidade nos permite complicar a cena. O oposto de distantismo não é proximidade. O oposto de encontro social não é distantismo. A dupla natureza de um problema complexo requer uma abordagem gradativa. Um vírus se beneficia da proximidade. Uma máscara protege os outros. Uma quarentena garante que aqueles que estão no grupo de risco estejam mais seguros. Mas e as "intensidades residuais que permanecem após um acontecimento ou episódio da vida"? Como isso vai "exacerbar o medo e a aversão do outro, daqueles que são sempre já-culpados"? (Bailey & Lobenstine, 2020).
Uma lógica de aproximação da proximidade recusa o "é" (ou o "não é") que tende a conservar as coisas simultaneamente juntas e separadas. Outro tipo de qualidade de encontro é necessário para entender que encontro e proximidade social podem ser a mesmíssima coisa que distantismo, e que nos manter separados pode ser tão eficaz em nos matar quanto qualquer vírus.
O perigo de uma lógica de equivalência geral é que ela presume que sabemos o que chamamos de distância. Ela presume que sabemos o que queremos dizer quando falamos "social".
A cultura surda e cega tem uma longa tradição de escrever cartas e participar de listas de e-mails. Ter participado ainda que tangencialmente de listas de e-mail com pessoas surdas e cegas me ensinou que muito pouco é tomado como garantido em termos de socialidade nessas formas de comunicação à distância, impostas por necessidade. "Quando estamos separados, não estamos sozinhos" (Moten & Harney, 2020). Colaborar para a consolidação ativa do pensamento não é trabalhar com a sensação de distância. É trabalhar na distância de um encontro emergente, um encontro não tanto social, mas na socialidade, ou na feitura da socialidade.
Legenda: imagem do filme Xapirimuu de Sebastian Wiedemann. Conheça o trabalho do artista-pesquisador aqui.
O social não é a socialidade. O social é uma pressuposição que faz da proximidade seu pré-requisito (seja na realidade ou em um espaço virtual). O social significa um achatamento da diferença. O social significa o interpessoal. Você e eu. Uma mais um.
A socialidade é a qualidade que emerge de um excesso do indivíduo em relação a si mesmo. O pensamento voa para longe em um movimento que vai além da perspectiva de qualquer indivíduo. O pensamento decola, sentindo a espessura de algo que não está ao alcance nem distante, mas que é de uma geometria muito menos padronizada. O pensamento se fractaliza na cadência de um diferencial.
O distantismo é sempre geométrico. Corta o mundo em pedaços. As histórias que contamos sobre as formas que o mundo assume dizem respeito às hierarquias das linhas que o segmentam. Neurotípico do início ao fim, o distantismo se baseia no conhecimento do que vale a pena registrar. Não estar à distância é uma qualidade diferencial - através das múltiplas camadas da experiência, na sua espessura.
No mundo da lista de emails da comunidade de surdos e cegos reina um compromisso com um envolvimento compartilhado. Esta partilha se refere menos ao conhecimento do que a aprender a compartilhar, um compartilhar afinado. Há muito em jogo em uma comunidade que não tem como se certificar de que entrarão em um contato face a face, de qualquer forma regular, com uma outra pessoa surda e cega. Radicalmente distinta das tendências das mídias sociais, das selfies e da autopromoção, o enfoque da lista de emails é no estudo: a sensação que salta de uma afinação criada coletivamente com o que importa.
Na língua de sinais norte-americana, “independência, liberdade e segurança” são ditas da mesma maneira: “os punhos cruzados se afastam um do outro e se separam, como se estivessem quebrando as algemas” (Sirvage apud: Clark, 2017). “A fantasia final do distantismo” (Clark, 2017).
Especialistas em “mobilidade e orientação” repetem o mantra de independência, liberdade e segurança, Clark argumenta, para que as pessoas surdas e cegas permaneçam em seu lugar. Algo que é terrivelmente parecido com a definição de Saidiya Hartman de liberdade como um “individualismo oneroso” (burdened individualism) (Hartman, 1997). O sonho do capitalismo racial é, afinal, conservar-nos em pacotes individuais distanciados, a liberdade entendida como o nosso “direito” de manter uma certa distância (o que é dizer, ser social nos seus termos do distantismo).
Independência, liberdade, segurança: estes são pré-requisitos neurotípicos, isto é, brancos, para o tipo de vida segura à distância que têm encorajado tantos a afirmar que a Covid19 comprometeu o seu padrão de interpessoalidade. A Covid19 ameaçou a dramaturgia do seu arranjo. A ironia, claro, é que as pessoas que estão gritando nas janelas pela sua liberdade não são aquelas para quem o distanciamento físico é impossível, aquelas que garantem a continuidade das nossas vidas e sofrem as consequências disso, adoecendo pelo vírus e muitas vezes morrendo. Elas já sabem tudo sobre o ônus da individualidade livre.
A neurotipicalidade assume a independência como sua medalha de ouro. Para ser um indivíduo é necessário provar que você pode se virar sozinho. A independência engloba a segurança - uma criança só sai para a rua quando está em segurança. Ela sai quando é evidente que é capaz de ficar em casa sozinha. O distantismo é escrito todo ele sobre esse arranjo: ser independente é ser capaz de prosperar sem a socialidade emergente que é tecida na vulnerabilidade da existência. Moten e Harney chamam tudo que contraria essa posição de ficar em casa, mas em movimento. Abrigar-se em movimento ressalta que entrar em relação não tem nada que ver com uma noção estática de proximidade nem com a dramaturgia do distantismo. Abrigar-se em movimento é uma afinação com o que toma forma na alquimia da aproximação da proximidade. O que é celebrado nesta qualidade da forma não é a fixidez da forma. O que é celebrado é o brilho de uma nova forma em transição. Essa transição possibilita acampamentos tanto atuais quanto virtuais, existências que brilham por um segundo ou por uma eternidade fractal.
O impacto do vírus é que ele rearranja nossa relação com a proximidade. O perigo é que isso nos envolve em uma separação ordenada. Esta separação ordenada não é um recurso compartilhado. Só está disponível para quem já se beneficia do distantismo. É apenas para quem já está à distância, quem já ganha do individualismo oportunista.
Bailey e Lobenstine preocupam-se com a reminiscência afetiva que virá no individualismo embalado à vácuo no pós Covid19. Nenhuma coletividade emerge do individualismo. A lógica do indivíduo prevalece: tudo que advém da interpessoalidade é o mais limitado individualismo. Se a dois metros ou dois centímetros, essa limitação sempre irá reforçar o distantismo que mascara a segregação dos nossos mundos. “Podemos nos afastar o suficiente das nossas soluções embrulhadas individualmente para criar soluções novas, mais eficientes, justas e coletivas?” (Bailey & Lobenstine, 2020).
“Às vezes o que nós realmente precisamos é de uma palavra nova, para mudar a maneira que vemos as coisas”, escreve Clark (2017). O distantismo é um colocar-se à parte que é tolerado, celebrado, festejado. Os surdos e cegos o conhecem pelo que ele é de fato: o compromisso para conservar as coisas como são, uma celebração da existência neurotípitica, branca, capacitista sobre todas as demais.
“Eles querem que perturbemos o mundo o menos possível” (Clark, 2017).
Erin Manning
tradução de André Arias e Clara Barzaghi
revisão Marina B. Laurentiis
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Erin Manning tem a filosofia e a arte como práticas. É titular da cadeira de Arte Relacional e Filosofia da Faculdade de Belas Artes da Concordia University, em Montreal, onde coordena o SenseLab. http://erinmovement.com/
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Referências
Clark, John Lee. Distantism. 2017.
Hartman, Saidiya. Scenes of subjection: terror, slavery, and self-making in Nineteenth century America. Nova York: Oxford University Press, 1997.
Montem, Fred; Harney, Stefano. Quando estamos sozinhos, estamos separados. 2020.
Bailey, Kenneth; Lobenstine, Lori. Social Justice in a Time of Social Distancing. 2020.
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A palavra é vírus
Simultânea e paralelamente à pandemia do novo coronavírus, muitas palavras também ganham a insistência das repetições. A cada segunda-feira, um novo ensaio pensando com as palavras. Quer saber mais sobre a série? clica aqui
Editores: Wander Wilson e André Arias. E-mails de contato: wanderwi@gmail.com / andre.fogli@gmail.com
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